Memórias, monumentos, especulações

Texto por Paula de Oliveira Camargo

A memória de uma cidade se constrói de muitas formas. Experiências, lugares, família, alegrias, tristezas, amores, medos. Cada uma, cada um, tem sua própria cidade. Entre tantos afetos, permeando o imaginário de quem vive as cidades em todas as suas formas, estão algumas estranhas pessoas, encarnadas em metal, pedra, concreto.

Para quem vive o hoje, algumas dessas pessoas parecem estar aí desde sempre. Desde tempos imemoriais. Já fazem parte da cidade de maneira tão enraizada que às vezes eu nem percebo mais que estão lá. Será que é assim com todo mundo? Mas é difícil não perceber suas barbas bem desenhadas, suas fardas pesadas, seus cavalos empinados, seus chapéus e condecorações. Ou suas cabeças calvas, seus ternos engomados, seus documentos empunhados, seus cães e suas poltronas. Ou uma combinação qualquer de alguns desses elementos.

Eles moram em calçadas, em canteiros centrais de avenidas, em centros de praças, em jardins projetados. Sobre pedestais, eles olham a todes de cima, afirmam que sua história é a que vai ser contada, que suas versões dos fatos são as que importam. Ostentam seus feitos e glórias, suas trajetórias heróicas, seus sacrifícios pela pátria.

Eles estão no Brasil, e estão espalhados pelo mundo. Eles não são acidentes. Suas origens não são desconhecidas. Estão sobre a Terra com uma missão: a de mostrar que suas vidas moldaram o mundo como o conhecemos hoje.

Mas os monumentos se moveram. Ou, ainda, foram movidos. Seus eixos foram deslocados. Foram lançados aos rios, aos mares, ateou-se fogo em suas bases, cortaram-lhes as cabeças. Suas imagens foram divulgadas pelo mundo. O lugar que ocupavam foi ressignificado. A cisão no espaço-tempo causada pelas suas idas, vindas e transformações fez nascer novos sentidos não só no plano físico onde permaneciam impávidos, mas sobretudo nas ondas mentais, abrindo espaço para ideias de mudanças possíveis. As pessoas seguem, sem pedestais, criando os momentos em que tudo isso vai acabar.

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Tudo que você toca

Você Muda.

Tudo que você Muda

Muda você.

A única verdade perene

É a Mudança.

Deus é Mudança.

Octavia E. Butler, A Parábola do Semeador, p.12

“Tudo isso acabar” não é um momento, entretanto. Nem sei se acaba, pra falar a verdade. É um processo que já começou e que, como uma vida nova recém-chegada nesse mundo, precisa ser alimentado, mantido, incentivado, relembrado a todo momento. Se lembrar e esquecer são duas faces da memória, é preciso manter-se viva a capacidade de lembrar os motivos pelos quais a mudança é necessária.

Esse processo envolve a criação de novas memórias que deem outros significados àquilo que se conhece — ou se julga conhecer. As memórias de monumentos plácidos, inertes, vão dando lugar a memórias desses mesmos monumentos em movimento, já na porta de saída, permanecendo em seus lugares já sem a tranquila certeza de que sempre estariam ali.

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Bristol, Inglaterra, 2020.

Edward Colston foi para o fundo do rio. Depois, voltou de dentro do rio, mas não para o mesmo lugar. A imagem do “comerciante” jogado ao rio, entretanto, já havia sido criada. Sua queda do pedestal é muito mais potente do que sua impávida figura ereta. Se o Colston filantropo é o monumento que foi erguido, o monumento que foi derrubado foi o Colston comerciante de pessoas negras sequestradas, arrancadas de suas terras, aprisionadas, e comercializadas como mercadorias. 

Era domingo. Quando lançado ao rio num mergulho de cabeça, Colston viu as águas turvas em volta de si. Sendo de metal, não se debateu. Deteve-se em apreciar algas, alguns pequenos seres aquáticos que guardam em si um quê de pré-história, um pedaço ou outro de plástico, um sapato perdido. Observava aquilo tudo sem saber que estava no fundo do rio. Estava inteiramente molhado. Nem se afogar ele podia. Olhava a parede de contenção do rio, afundado. Não sabia nadar. Seu pedestal já não o sustentava. Sentia o interior de seu corpo se encher da lama do fundo do rio e da vida rastejante que a lama guarda. Passaram-se cinco dias. Sentiu uma corda enlaçar seu pescoço. Não era enforcamento, pois seu corpo metálico já não respirava, mesmo. Uma corda em volta dos pés, também. Ele, o comerciante de gente, estava sendo pescado. Aos poucos, sentia o ar tocar seus sapatos de fivela, a barra de sua veste, a ponta de seus longos cabelos. Por fim, o nariz, a testa. A tinta vermelha e azul o incomodava, mas sua limitada capacidade de ação não permitia que ele removesse aquelas cores. Achou indigno sair da água desse jeito. Mas sair da água já seria um começo. Será? Passou direto por seu pedestal. “Ei, é aqui! Meu lugar é aqui!”. Ninguém escutou. Seguiu caminho. O leito frio e duro de onde agora olhava para o teto não permitia que visse as árvores. Não permitia que o vento tocasse seu corpo. Não permitia que a chuva o molhasse. Olhava fixamente o teto branco. Inabalável. Não conhecia aquela posição. Um senhor, desbravador de terras, comerciante, ser visto desse jeito… O pedestal ainda vazio no parque. “Bem feito”, diziam visitantes do museu. Houve quem criticasse ver a figura ali sozinha, toda pintada, naquele caixão transparente que nem uma cama era. Gostavam de olhar para cima para vê-lo. Assim, parecia pequeno. Bem feito.

O que fazer com esse senhor deitado nesse museu? Ninguém sabe. Faz parte da história. Faz parte da memória. Faz parte.

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São Paulo, Brasil, 2021.

Tacaram fogo no Borba Gato em plena Avenida Santo Amaro. Depois, o fogo foi apagado. Mas a memória criada do imponente bandeirante em chamas é muito mais potente do que sua presença chamuscada. Se o Manuel de Borba Gato que foi construído foi o bandeirante, desbravador do Brasil, descobridor de minas de ouro, o que foi incendiado foi o assassino, genocida, etnocida, o que para desbravar o solo que viria a ser chamado Brasil caçava, escravizava e estuprava indígenas, atacava a floresta.

Começou com mais um protesto. Feito de concreto e revestido de pedras brasileiras, Borba Gato sempre se sentiu invencível do alto de seus treze metros. Era pesado, também. As pessoas saíram de um caminhão. Descarregaram vários pneus e colocaram-nos na avenida, e também em volta dele, fazendo um círculo. Seriam canibais ritualizando seu corpo inerte?  Depois, o calor. As chamas. A fumaça. Sobretudo, o calor. Com certeza, canibais. Ele não podia sair. Nunca pensara morrer queimado. Ele, o caçador, agora em chamas. A fumaça fazia arder as narinas. Os pássaros que pousavam sobre o cano de sua espingarda e sobre seu chapéu não estavam mais lá. Só restaram suas fezes brancas e secas, as manchas sobre sua grandeza. Ele não gostava de ficar sujo de cocô de passarinho. Não havia o que fazer em sua imobilidade. Pegar fogo era pior. Bem feito. Quantas vezes escapara desse destino para, imortalizado na avenida, arder em labaredas. Não queriam sua carne, afinal. Esquecera-se de sua pétrea existência. Chegaram os bombeiros, apagaram o fogo. Agora ele estava queimado e molhado. O fogo não acabou com ele. Pena. Vaso ruim não quebra, já dizia minha avó. Borba Gato de concreto não queima. Da população indígena que ele perseguiu e escravizou, sobrou pouca gente. Essa gente que tem suas terras mineradas por novos borba-gatos de ocasião. A estátua do Borba Gato agora tem escolta policial para protegê-la. Ele ri por dentro, mesmo com a bota chamuscada. Vou guardar na memória as labaredas.

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Todas as estátuas são uma mentira.
Todas as estátuas são feitas para um dia serem derrubadas.

Paul B. Preciado, When statues fall

Essas ações de reivindicação de um espaço simbólico na cidade aconteceram durante protestos antirracistas e manifestações nos anos de 2020 e 2021. Para mim, são memórias e, como toda memória, são carregadas de imprecisões e superposições. Foram muitos os protestos, em vários lugares do mundo. Cristóvão Colombo decapitado por manifestantes em Boston, Massachussetts. Rei Leopoldo II removido da praça na Antuérpia (esse, foi a prefeitura que removeu, mas só isso não basta). Pedro I ritualizado e encantado pela artista em seu círculo de fogo no meio da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro. Pelo mundo, as imagens se multiplicam. Imagens de colonizadores, escravizadores, estupradores, invasores, assassinos sendo derrubados, pintados, decapitados, deslocados, ressignificados, dando espaço a essas memórias de um futuro em que tudo isso pode, sim, acabar.




Sobre a autora:

Paula de Oliveira Camargo é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Design da Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa design, cidade, política e patrimônio cultural, não necessariamente nessa ordem. Integra a equipe editorial da Arruar zine.

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