Texto e fotos por Gabriel Schvarsberg
…uma linha abstrata. Pois tudo o que muda passa por essa linha… Ser uma pulga de mar, que ora salta e vê toda a praia, ora permanece com o nariz enfiado sobre um único grão. Saiba apenas que animal você está se tornando, e sobretudo o que ele se torna em você, a Coisa, o inominável, “a besta intelectual”, menos intelectual ainda quando escreve com seus cascos, com seu olho morto, suas antenas e suas mandíbulas, sua ausência de rosto, toda uma matilha em você perseguindo o que, um vento de bruxa?
Claire Parnet e Gilles Deleuze, Diálogos
O que segue é uma memória de um dia de carnaval no centro do Rio de Janeiro. O ano… já não lembro, mas pouco importa. O dia é certamente um domingo de carnaval, daqueles em que a brincadeira começa cedo. Quando tudo isso acabar, muita gente desejará apenas pular carnaval de novo, aglomerando sem paranóia. Essa memória, reencontrada, rasurada, reinventada neste fim de 2021, às vésperas do segundo carnaval em tempos de pandemia, é uma homenagem a esse desejo, a despeito dos riscos ou das interdições que possam vir a se apresentar no próximo fevereiro. Ela também reivindica a potência ou, quem sabe, a positividade de algumas boiadas… sim, mesmo e precisamente nestes tempos em que “passar boiada” virou símbolo de desmatamento, negacionismo climático e de uma visão de Brasil velha, racista, extrativista, violenta e colonialista. Mas, como se diz, esses aí não passarão! Nós, passarinho, e por outras histórias, porque uma outra boiada é possível…
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Espalhou-se nos primeiros dias de carnaval que naquele ano sairiam cinco cordões do Boi Tolo de diversos pontos da Guanabara, e assim foi. Cada boi uma boiada, acordavam tranquilos, em tamanho ótimo, como um pequeno Tolo, quase bezerro, de anos atrás. Da primeira boiada que fui, ainda lembro da partida. Aquelas caras ainda amassadas de madrugança, dispersas, chegando por ruelas semi-escuras de alvorada, com os postes se apagando. Dois músicos começam a tocar para aquecer, enquanto vem chegando mais gente. Em outro canto outros também começam. Chega o primeiro ambulante, levanta-se a primeira perna-de-pau. Segue-se assim por um tempo, como se o bloco estivesse se espreguiçando e de repente já estamos em posição. Naipes agrupados, percussão ao fundo. Os sopros puxam a abertura num crescendo suave: Vi-va o zé pe-re-ira, vi-va o zé pe-re-ira, vi-va o zé pereira, vi-va o car-na-val… E assim começa. Os boitolinos não se cansam de falar, orgulhosos, da auto-organização que se faz como num lance de mágica.
A agradável surpresa na disparada do Beco da Sardinha foi ver que o Boi a que me juntei não levantou o tradicional estandarte azul, mas outro, de um preto profundo e metalizado: black boi, black bloco — nada mais contingente para os dias de hoje. E tantos rostos conhecidos, por todo o ano perdidos uns dos outros no anonimato da metrópole. Figuras que compõem mais um refrão do cordão, e quando se encontram giram chaves que abrem todo um universo de maravilhas e esquisitices com suas histórias e sentidos inscritos nos corpos-ruas.
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A fantasia é um poderoso dispositivo de deslocamento humano. Veja-se os bacanais, as mascaradas, os rituais sacro-profanos oraculares de incorporação e comunicação com outros mundos presentes em expressões dos mais diversos povos e culturas. “Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis”, nos sugere Foucault em suas heterotopias.
No carnaval, como em muitos desses rituais, a indumentária e os adereços se somam ao consumo em grupo de substâncias psicotrópicas para catalisar algo maior, mais intenso: a própria experiência da multidão. “Nós sabemos o que é a multidão”, afirmava Nelson Rodrigues.
Bernard Shaw tinha-lhe horror e explicava: —’Gosto de quem tem uma cara só’. Mas a multidão não tem nem isso. Simplesmente não tem cara. Como cronista esportivo, faço minhas experiências com as massas. Bem me lembro do jogo Vasco X Flamengo. Renda de 400 milhões e quebrados. Quando olhei o estádio lotado, deu-me a vontade de soluçar, como o astronauta: — ‘A multidão é azul. Mas não importa a cor parnasiana. Pouco depois, notei que já não era mais azul. Era negra. E assim, até o fim do jogo, a multidão teve todas as cores. Mas o que importa é a constatação: — ela não é humana, não tem nada a ver com a condição humana.
Provocação interessante essa. Concordando ou não, entremos na deriva de Nelson, porque ela nos ajuda a perceber que o que está em jogo aqui é a possibilidade de um sair de si do sujeito que se lança na turba e se torna multidão. Quando bate forte, pode ser uma potente dessubjetivação. E o que pode acontecer aí, nesse estado? Deixemos em suspenso, por enquanto, qualquer juízo de valor e sigamos com o dramaturgo:
Em outra ocasião, e no próprio Estádio Mário Filho, fiz uma outra experiência ainda mais profunda (e meio alucinatória). Era uma das quase 200 mil pessoas presentes. Aconteceu então que, imediatamente, perdi qualquer sentimento de minha própria identidade. Ali, tornei-me também multidão. Esqueci a minha cara, senti a volúpia de ser “ninguém”. Se, de repente, o povo começasse a virar cambalhotas, e a equilibrar laranjas, e a ventar fogo, eu faria exatamente como os demais. E, então, senti que a multidão não só é desumana, como desumaniza. (Não sei se estou falando demais. Paciência.) Lá estávamos eu e os outros desumanizados. Pouca diferença faria se, em vez de 200 mil pessoas, fossem 200 mil búfalos, ou javalis, ou hienas.
A ironia contribui para evitar que um certo a priori negativo da ideia de desumanizar impeça que se note o dado sedutor da experiência: afinal, sentir a volúpia de ser ninguém pode ser absolutamente libertador numa sociedade cada vez mais modelada por dispositivos que atuam sobre a identidade própria, seja pela exaltação do autoimagem, seja pelos controles e vigilâncias operados pelo Estado ou pelos algoritmos corporativos. No entanto, como dizia Baudelaire há mais de século atrás, soprando inspirações à escritura rodrigueana,
Não é dado a todo o mundo tomar um banho de multidão: gozar da presença das massas populares é uma arte. E somente ele (o poeta) pode fazer, às expensas do gênero humano, uma festa de vitalidade, a quem uma fada insuflou em seu berço o gosto da fantasia e da máscara, o ódio ao domicílio e a paixão por viagens. Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis pelo poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão também não sabe estar só no meio de uma multidão ocupadíssima.
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Àqueles disponíveis aos riscos e delírios da desumanização em forma de boiada, caberá a tarefa de povoar sua solidão por meio de certo estado de presença que guarda qualidades misteriosas, ainda que bastante típicas do carnaval. É que assim como os estados físicos da água são apenas formas diferentes de organização (posições relativas) e interação (intensidades de ligações), nos diferentes estados que o bloco percorre, cada corpo fantasiado, brincando, tocando, vendendo cerveja ou sacolé, namorando, fazendo corda-humana, será uma molécula fazendo sua parte nas ligações que fazem da multidão um só corpo.
É assim que Spinoza vê todo corpo: como uma multidão. Já nós, podemos ver a multidão como boiada… e mais, migrarmos de uma boiada para outra. Não porque precisamos, mas simplesmente porque podemos. Agora a cidade é assim: largos intervalos entre boiadas, onde se come, se descansa na sarjeta, se informa, se perde, se é assaltado. Faz parte. Logo encontramos outra boiada. E é toda uma outra vibe, outro modo de estar multidão, que começa a desfazer aquele anterior. Este outro boi segue num percurso errático, cruza grandes avenidas, depois entra em beco, sai em beco… Algumas ruas depois, já se passaram horas desde o Beco da Sardinha e esta boiada cruza agora a Cinelândia, arrastando mais uma leva de desavisados. Tudo aperta na passagem por fora das grades do Passeio Público, quando percebemos que rumamos para a Lapa.
O eu volta a si e pede um respiro do aperto. Desvio numa rua à direita para dar a volta na quadra e pegar o bloco pela frente. Nesta rua, uma tuba, quer dizer, um músico com uma tuba, ao lado da namorada, faz um micro bloco acontecer: “Quando a noite/ chega / e a chuva se foi /e a lua /é a única coisa /que posso ver… oh darling, darling, stand, bye me… oh oh oh…”, cantávamos os bêbados entre o inglês e a língua do nã-nã-nã enquanto a tuba marcava a base. Singelo acontecimento, quando bastou uma tuba para juntar os gatos pingados que caminhavam na rua transversal à boiada. Na esquina, a tuba vai para um lado, vou para o outro, e chego aos arcos da Lapa, apenas para encontrar com outro Tolo (seria um terceiro, ou aquele primeiro?).
Um arrepio percorre a espinha. Um quarteirão separa as duas boiadas e elas estão rumando para a mesma direção. E talvez esse em que caí já seja a fusão de dois, pois é uma multidão enorme e, como um tsunami, vai engolindo tudo por onde passa. Na enorme triangulação que vai dos muros da Esdi, aos Arcos, até a Sala Cecília Meireles, é tudo Boi Tolo. A Boiada parece estacionada, mas na verdade se move muito lentamente, escorrendo como lava quente por entre qualquer obstáculo, carros, ônibus, barracas e canteiros.
Começa a se formar uma nuvem de tensão no ar. Os foliões estão confusos, se olham, se procuram, se perdem. Como se aquele encanto da auto-organização lançado lá no início tivesse se quebrado. Mesmo a banda se fragmenta. Onde está o estandarte? Começa uma fina chuva e um grupo acha que tem que ir pela direita de uma fila interminável de ônibus, sem ver que outro pedaço da banda já seguiu pela esquerda e já se encontrou com o outro boi, aquele que vinha da Cinelândia.
Atrapado no meio da loucura, depois de tentar inutilmente ajudar parte da banda a encontrar o melhor rumo, percebo que não há melhor rumo e que ninguém está perdido e, por isso, tanto faz ir para um lado ou outro. Se um satélite mirasse agora para cá, provavelmente registraria que as cinco boiadas se encontraram e se fundiram numa só, esparramada da Cinelândia à Lapa, tomando todo o espaço disponível entre as edificações.
Não parece possível ao bloco ultrapassar o trânsito como bloco. Mas isso aqui é uma força da natureza selvagem do carnaval. A chuva engrossa para refrescar os ânimos e parece ajudar a multidão a aceitar a situação, como um gato quando para de se debater num banho forçado. Não dá para fugir. Fragmentos esparsos das bandas ainda se esforçam em tocar, numa tentativa heroica de manter a coesão ao estilo “naufrágio do Titanic”.
Com essa precária liga prestes a romper, a sensação de compor um só grande corpo se desmancha com o derradeiro silenciar dos instrumentos. Cada folião, só ou em pequenos grupos, vai se resolvendo aos tropeços, encontrando seus caminhos, pulando as poças de lama que rapidamente se formaram, cavando suas brechas pelos estreitos corredores entre carros e ônibus. As buzinas do trânsito oferecem um choque de realidade. Sobe aquele cheiro de Lapa de domingo de manhã. É um tanto desolador ver o Boi Tolo desse jeito. Pense na figura do gato tomando banho. Toda dignidade escoou pela sarjeta. Muitos não resistiram à dificuldade e abandonaram o barco. Outros, insistimos, mirando uma inevitável retomada no Aterro.
Um cara esbarra em mim carregando um dos estandartes do Tolo. Com cara de perdido, pergunta se vi a banda. O estandarte, que naturalmente se reveza de mão em mão, deve ter se afastado da banda na bagunça e o amigo, meio desajeitado, quer apenas devolver ao bloco que a essa altura não dá pra localizar. O engraçado é que uma das funções do estandarte é justamente guiar o Bloco. É como sua bússola e referência a todos os foliões. Lembramos disso juntos e nos colocamos a procurar os outros quatro estandartes – lembrem-se essa história tem cinco bois tolos. Não é que quando nos damos conta, já estavam todos muito próximos, provavelmente se buscando. O amigo perdido, sem saber, provavelmente estava também guiando alguns foliões dispersos. Dois já estão juntos, há um outro mais à frente, e o amigo parte, sentindo o chamado para se juntar a eles.
Quando os estandartes se juntam é como se o encanto retornasse. [volta a música em tom triunfal para ajudar no efeito de exagero do que segue] Sim, a força misteriosa da auto-organização não parou de maquinar as conexões necessárias, extraindo energia de um caldo fértil de caos urbano, fermentado no encontro do trânsito com a boiada, com chuva, lama, buzinas e restos de fantasias pisadas. Vendo esta situação, totalmente ingovernável, penso que não haveria decreto municipal, seja o prefeito neoliberal ou neopentecostal, nem choque de ordem, ou guia de blocos alternativos da Veja, ou o que quer que seja… capaz de capturar as tramas, tramoias e boicotes erráticos do Boi Tolo.
E não é que pouco a pouco as bandas vão se reagrupando? [Vem um repique da bateria crescendo….] Estandartes juntos, pernaltas à frente, naipes organizados. Os cinco tolos formam finalmente seu grandioso cordão unificado. Sem pressa, passo a passo, a boiada ultrapassa o trânsito e toma as pistas do aterro para si, rumando para a tradicional travessia do vão do MAM. E lá chegando, emanamos aquele grito que concentra e explode em “índio quer apito se não der pau vai comer”. Passadas as pedras do jardim, que lembram uma prova das olimpíadas do Faustão, o corpo humano, aquele que madrugou e agora sente fome, pede arrego.
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Na debandada, cruzando outro carnaval, o dos patrocinadores e da Prefeitura, e mesmo com a cidade-sem-carnaval, sinto que saí de outro lugar, que hesito em identificar com a cidade que habito no dia-a-dia. A multidão dos Tolos cria e segue outras regras, outros valores, troca outros afetos, sob formas muito diferentes das dessa. Ao contrário dessa cidade, na outra há maior disponibilidade, seja para a mais singela alegria, seja para um modo de presença que não está preocupada com o passado ou na correria para os compromissos futuros. Nesta outra, parece mesmo que o tempo não tem muita importância. O que importa é habitar as intensidades.
Isso não demonstra que quando há desejo comum somos capazes de criar não só outra cidade, dentro dessa mesma, mas outros mundos em alternativa a esse? Não que seja fácil sustentar o carnaval por muito tempo — e olha que a rapaziada anda batendo recordes a cada ano. Mas não é de se menosprezar o possível que vivemos nessa boiada.
Talvez esse lugar que o Tolo habita (ou que habitamos no Tolo ou que o Tolo habita em nós), só aconteça por que não há muito planejamento, muita coordenação, muita expectativa, muito projeto. Nos deixamos surpreender. Acontece num modo que não somos capazes de decifrar ou estruturar segundo a racionalidade da eficiência e da causalidade, por isso nos sentimos mais à vontade de falar palavras proibidas, como magia; palavra que quer dizer do conjunto das mínimas mudanças nos sentidos de todos aqueles que se permitem envolver pelos encantos de um acontecimento e se permitem levar por ele, mudar seu estado de corpo e, assim, ver e se ligar aos outros corpos e à cidade de outra maneira.
Meu palpite é que o Tolo, não o que ele é, mas como ele acontece, seja menos expressão de um conjunto de indivíduos e mais um acúmulo de saberes e memórias que transbordam as formas individuais do pensamento, atualizando-se na criação presencial de um corpo comum marcado por rastros de aconteceres anteriores. Pode se expressar através de algumas pessoas, mas é certamente maior que elas, o que alguns chamariam de inteligência coletiva, desde que se considere formas de inteligência além de um referencial estritamente mental que descola cabeça e corpo. Deve ter sido essa inteligência que inventou, não sem riscos, a virada da multiplicação que proporcionou a tantos foliões a experiência de um Boi Tolo que dá pra ficar perto da banda, brincar sem aperto e navegar de uma ponta à outra, pelo menos antes da fusão. Não um, nem dois um três…. mas cinco cordões do Boi Tolo… simultâneos.
Eis um autêntico pulo do gato, ou coice do boi, que não surgiu do nada na mente de um suposto organizador, mas possivelmente de um erro sem responsável. É o que suspeito, pois lembro que em anos anteriores algo parecido com isso já havia acontecido, mas por acidente. É que em sua tradição anárquica, onde qualquer um com instrumento pode compor a banda e puxar a próxima música, formava-se uma banda enorme que não conseguia se comunicar direito. Em determinado momento, sem perceber, esta se bifurca e algum tempo depois descobre-se que dois blocos em lugares diferentes simultaneamente se nomeavam Boi Tolo.
Essa inteligência, que deve ter percebido no engano uma possibilidade de resposta à questão do aumento exponencial do cordão, deve ser a mesma que soube, a cada momento, diante de cada encruzilhada, fazer as melhores escolhas, reorganizar os corpos, criar movimentos e traçar os percursos. Não havia helicóptero, nem walk-talks e coordenadores pra arquitetar o movimento. Havia, claro, pessoas com experiência acumulada nesse modo de fazer corpo-rua, que conversavam com olhares e gestos mas, mesmo essas, enquanto discutiam com movimentos de dedos se ir ou esperar, viam-se arrastadas por movimentos maiores que já haviam decidido por onde ir.
A novidade foi forte, mas toda uma memória do Tolo se fez mais uma vez presente: as entidades boitolinas, as marchinhas, a auto-organização, a ocupação do centro sem aprovação ou patrocínio, a energia renovável por corpos que se revezam e fazem a boiada durar uma eternidade, a apoteose no vão do MAM… Bloco que reclama para si a qualidade de cordão e não por coincidência é um dos que encarna hoje a força ancestral e ingovernável do carnaval de rua, sem donos e normas, que reverencia as tradições mas é político da cabeça aos cascos, orgulhoso de seu caráter resistente à mercantilização da cidade, do carnaval e da vida.
É algo assim o Boi Tolo, inclassificável. Verdadeira entidade que atravessa cada folião e faz crescer aí uma boiada livre que vai pastar em outras terras. Reza a lenda que tudo começou de um erro. Cria bastarda do Cordão do Boitatá. Foi um grupo de atrasados, preguiçosos que não chegaram a tempo, mas munidos de instrumentos, sacolé de caipirinha e desejo de carnaval, não desanimaram. Da junção de um tosco pedaço de papelão riscado a caneta ‘Bic’ com um tridente de plástico do Saara, improvisaram um estandarte e batizaram o cordão: “do boi tolo” (de um lado) “ou dos boicotá” (do outro). Desde o início ambíguo, duvidoso, incerto, como seus caminhos (b)errantes. Deve ter sido Exu que soprou o nome que ‘pegou’ ali na encruzilhada, por cima dos chifres da fantasia de diabo, bem na hora que passava um vento de bruxa que a boiada pôs-se a seguir. MUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
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Em tempos de restrição à aglomeração e monopólio das formas de vida individualizadas, quando tudo isso acabar, ou mesmo antes disso, que outras boiadas sejam possíveis…
…um pouco de multidão, por favor, senão eu sufoco.
Referências dos trechos de textos citados:
BAUDELAIRE, Charles. “As Multidões”. Em: Pequenos Poemas em Prosa (Le Spleen de Paris). Disponível em: http://pequenospoemasemprosa.blogspot.fr/
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 edições, 2013.RODRIGUES, Nelson. “A solidão do líder”. Em: O óbvio ululante: primeiras confissões; seleção Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Sobre o autor:
Gabriel Schvarsberg é professor do curso de arquitetura e urbanismo da Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa relações entre cidade e política a partir da experiência de rua. Integra a equipe editorial da Arruar zine.