Uma rua

Texto e imagens por Fabiana Duffrayer

OUTRA RUA

Era outra rua, diferente dessa. Outro bairro, outra cidade talvez. De manhã escola, cada um na sua. Por algum mistério, quase ninguém estudava junto. Gama Filho, Miragaya, Zuleika, Gaudium, SETA, Pentágono. Depois do almoço uma trocada rápida de roupa e rua. Feernaandaaaaaaa! Era assim que se chamava do portão. Campainha só para estranhos. Tio Régis às vezes fingia que não ouvia, só para passar a tarde tranquilo na varanda. Pique tá, pique alto, elástico, queimado, bicicleta, skate, hifi. Meninos levam refrigerante e meninas levam salgado (leia-se biscoito). Dança da vassoura, mobilete, festa junina, salada mista e conversa de portão.

Provavelmente, crianças e jovens eram puxadores da vida comunitária. Uma espécie de obrigatoriedade de comunicação entre os vizinhos. Uma condição. E certamente por elas, se fechavam as ruas sob quase qualquer pretexto. Futebol, pipa, churrasco, festa junina. Havia praças, mas essas eram de todos. A rua podia ser só de alguns, uma espécie de quintal estendido. Mas só nesse pedaço de rua, 150m de paralelepípedo, de 1980 a 1990 foram 38 crianças e jovens de até 24 anos. Hoje são apenas 4 na mesma faixa etária. Todos os outros são adultos com mais de 25.

De lá para cá, muitas foram as mudanças, e algumas significativas. Podemos supor que a primeira é de ordem estatística e bastante evidente: a mudança no padrão das famílias residentes com a diminuição da quantidade de crianças e jovens. A segunda é política, ou melhor, ideológica: a crença no indivíduo. Comecemos aqui uma trajetória aventureira de análise de um quadro urbanístico e social a partir desse pedaço muito particular de rua. 150m de pequenas vidas, um dia compartilhadas.

ALGUM CONTEXTO

No início da década de 1960, a Baixada de Jacarepaguá dispunha de uma área urbanizável de 122,5 km², o que correspondia a cerca de 25% de toda área potencialmente urbanizável da cidade do Rio de Janeiro (REZENDE; LEITÃO, 2014). A ocupação da região sofreu fortes influências do Plano Piloto para Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá formulado por Lúcio Costa em 1969. Diante da valorização fundiária exorbitante da Barra da Tijuca entre 1972 e 1975 da ordem de 1903% (REZENDE; LEITÃO, 2014, apud WETTER; MASSENA, 1982), seus bairros periféricos atraíram todo tipo de empreendimento imobiliário mirando em um público de menor renda. 

O pequeno trecho de rua da minha memória é um dos frutos desse processo. Destinado à pequena classe média, o conjunto residencial de casas unifamiliares de dois e três quartos foi rapidamente ocupado em meados da década de 1970 e início de 1980. Como muitos novos empreendimentos, especialmente em áreas de subúrbio, este foi principalmente ocupado por casais jovens com filhos. Essa composição conferiu um dinamismo à vida comunitária do conjunto residencial que não resistiu às transformações socioculturais na passagem do tempo.

Na busca por dados estatísticos que coloquem a abordagem no contexto da região, é preciso lembrar que a XVI Região Administrativa de Jacarepaguá teve sua atual configuração político-administrativa criada em 1992, no Plano Diretor Decenal do Rio de Janeiro. Por esse motivo, dados dos bairros anteriores ao censo de 2000 são difíceis de se encontrar. Ainda assim, é possível observar nos números o mesmo fenômeno.

Se por um lado a população da região como um todo crescia, nas últimas décadas o número de crianças e jovens vem diminuindo. No ano de 2000, a faixa de até 24 anos somava 42% da população estimada de toda a região administrativa de Jacarepaguá, na década seguinte esse número diminuiu para 36% e em 2020 para 27%. Na Taquara, crianças e jovens somavam 52% da população do bairro em 2000 e apenas 33% em 2010. Ao mesmo tempo, a faixa de população residente acima dos 25 anos estimada na região aumentou em 42% em duas décadas. A Taquara registrou um aumento de 21% da população nessa mesma faixa etária em dez anos. A diminuição do número de crianças e jovens e o aumento da população com mais de 25 anos pode ser considerada um fato em todo o Município do Rio de Janeiro (Tabela 1).

A relação que se faz aqui da vitalidade da rua com a faixa etária de seus moradores é fruto de mera observação. Brincadeiras, saídas para a escola, natação, explicadora, escolinha de futebol, conversas de calçada, tempo de bicicleta, festas organizadas localmente nas ruas ou em praça pública. A intensa movimentação por todo o conjunto e suas praças se dava primordialmente em torno das crianças e dos jovens. Na falta deles, adultos preferem ater-se a outros tipos de atividades e o reflexo no uso dos espaços comuns é visível. Esse uso constante das ruas a partir de sua vocação como espaço público é bastante particular na comparação entre bairros estritamente residenciais e bairros mistos. Jacobs se refere a “fogueiras de uso e vitalidade” para se referir aos locais das cidades em que a complexidade e a vitalidade de usos dão às regiões das cidades estrutura e forma consideradas por ela adequadas.

“Essas fogueiras metafóricas que definem espaços são formadas – voltando à realidade concreta – por áreas onde os diversos usos e usuários dão-se mutuamente apoio concentrado e dinâmico. (…) Essa é a ordem essencial para o qual o desenho urbano pode contribuir” (JACOBS, 2011, p.420).

Grande defensora de usos mistos como forma de construção de ordem e sentido, áreas estritamente residenciais fazem parte do pacote de críticas de Jacobs ao planejamento urbano ortodoxo. Na falta desse dinamismo de usos e funções, a vitalidade da rua da minha memória passa essencialmente pela vida das crianças e jovens e suas atividades nesse espaço. Segundo Lefebvre o “interesse do ‘tecido urbano’ não se limita à sua morfologia. Ele é o suporte de um ‘modo de viver’ mais ou menos intenso ou degredado: a sociedade urbana.” (LEFEBVRE, 2008, p.19, grifo do autor).

ESSA RUA

Por essa e outras ruas do conjunto, por alguns dias caminhamos, eu e minha sobrinha, como um exercício matinal de combate ao tédio. Encontram-se pelo caminho pequenas distrações como florezinhas, insetos, casas peculiares, pássaros excêntricos, cachorros animados e gatos preguiçosos. Mas em dias de semana, sábados ou domingos, pela manhã ou à tardinha, pessoa quase não se vê.

Da mesma maneira que a juventude explica o fervo da rua em tempos passados, os adultos de hoje explicam seu marasmo. Para falar desse adulto – importante ingrediente da vida comum como a conhecemos hoje – podemos recorrer a Byung-Chul Han que diz que “O sujeito neoliberal como empreendedor de si mesmo é incapaz de se relacionar livre de qualquer propósito. Entre empreendedores não surge amizade desinteressada.” (HAN, 2020, p.11, grifo do autor). Isso, por si só, já seria uma grande contribuição para o esvaziamento das ruas de bairros residenciais de classe média e condomínios. Mas podemos ir além. Em busca do aproveitamento máximo, a sociedade do cansaço busca o uso do espaço público “útil” em detrimento de atividades contemplativas. Dessa forma, em seu tempo livre, entram no cardápio do sujeito neoliberal academias, bares, restaurantes, shoppings e por vezes parques, praias e trilhas, deixando as ruas e praças de seus bairros residenciais vazias.

Somado a um comportamento cada vez mais individualista – voltado mesmo para dentro – o avanço tecnológico com toda a reclusão que ele possibilita como redes sociais, trabalho remoto, TV a cabo, serviços de streaming, veículos particulares, ar-condicionado etc., contribui para esse cenário de esvaziamento. Mimos que fizeram da clausura uma atividade bastante confortável para o indivíduo. Um outro aspecto se dá no discurso em prol da segurança, com o aumento da altura dos muros e o fechamento completo da visada das calçadas. Trocam-se grades por portões fechados e câmeras de segurança tomam o lugar da campainha. Em nome da praticidade e da eliminação de áreas escuras, grandes árvores são substituídas por espécies mais domáveis e com menor necessidade de manutenção. Aí se vão até os pequenos encontros que eram possíveis na varredura matinal das calçadas. Termina-se assim transformada a rua em um ambiente completamente estéril.

“A cidade sempre teve relações com a sociedade no seu conjunto, com sua composição e seu funcionamento, com seus elementos constituintes (campo e agricultura, poder ofensivo e defensivo, poderes políticos, Estados, etc.), com sua história. Portanto, ela muda quando muda a sociedade no seu conjunto. Entretanto, as transformações da cidade não são os resultados passivos da globalidade social, de suas modificações. A cidade depende também e não menos essencialmente das relações de imediatice, das relações diretas entre as pessoas e grupos que compõem a sociedade (famílias, corpos organizados, profissões e corporações etc.)” (LEFEBVRE, 2008, p.52, grifo do autor).

Nessas andanças, me parece que o simples ato de caminhar é um dos mais importantes propulsores do relacionamento com a rua, a praça, a paisagem, consequentemente com o bairro e a cidade. É aqui que vai se estabelecendo um processo de reconhecimento, pertencimento e afeto. A partir daí, podemos enumerar um tanto de fatores adventos do modo de vida pautado no individualismo que vem transformando nossa forma de nos relacionar com os espaços públicos, sendo a rua a primeira e menor instância desses espaços, mas talvez a mais relevante. 

ARRUAR É PRECISO

O esvaziamento deste pequeno pedaço de rua pode ser explicado por alguns dos fatores já mencionados como a troca de caminhadas a pé por deslocamentos em veículos, a diminuição das atividades feitas na rua pelos próprios moradores como limpeza e manutenção das calçadas e brincadeiras infanto-juvenis tão características das décadas de 1980 e 90. Embora possa parecer trivial, essas atividades estão no cerne da construção de uma relação com o espaço público. A mudança dessa relação transforma por completo a maneira que vivenciamos a rua, o bairro, a cidade.

“As inter-relações que permitem o funcionamento de um distrito como uma Entidade não são nem vagas nem misteriosas. Consistem em relacionamentos vivos entre pessoas específicas, muitas delas sem nada em comum a não ser o fato de utilizarem o mesmo espaço geográfico.” (JACOBS, 2011, p.146)

À medida em que deixamos de utilizar o mesmo espaço geográfico, nos transformamos cada vez mais no sujeito indivíduo e nos afastamos do sujeito cidadão, coletivo. As consequências dessa transformação podem ser ainda mais amplas, no sentido de que o direito à cidade “é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização” (HARVEY, 2014, p. 28). Dessa maneira, o engajamento na luta por direitos sociais passa pela solidariedade às questões do outro e no acolhimento às diferenças, e são as práticas e ações diárias que operam as mudanças na cidade.  

Ainda segundo Jacobs:

“As cidades são um imenso laboratório de tentativas e erro, fracasso e sucesso, em termos de construção e desenho urbano. É nesse laboratório que o planejamento urbano deveria aprender, elaborar e testar suas teorias.” (2011, p.5)

As observações que faço sobra a rua da minha memória e a rua de hoje, levam a crer que poderíamos nos beneficiar de uma retomada dessa vida em comum. Mas antes que se possa transformar o espaço urbano, é preciso que haja também uma reaproximação com o que entendemos por espaços comuns. Para Harvey, espaços e bens públicos são uma questão de poder de Estado e administração pública, mas não constituem necessariamente um comum. Este último depende de uma ação política por parte dos cidadãos e das pessoas que pretendam apropriar-se deles. Dessa maneira, o comum deve ser entendido como “uma relação social instável e maleável” entre grupos sociais autodefinidos e as condições do meio social e físico considerados essenciais para sua vida e subsistência (HARVEY, 2014, p.145). Então, quando foi que deixamos de entender o comum como essencial para nossos grupos sociais? E como podemos retomar o comum nesse pequeno espaço de rua?

Segundo Escobar, vivenciamos hoje uma crise contemporânea que coloca em xeque o modelo civilizatório da modernidade, e uma resposta requer uma mudança radical dos modos de vida e de produção de mundos. E o design pode contribuir para a realização de formas mais comunais de autonomia, a uma dimensão relacional da vida. Ainda, compreender o mundo pela perspectiva ontológica do design significa reconhecer que as coisas que ele projeta são capazes de transformar as práticas cotidianas e engendrar profundas alterações na sociedade (2017). É no entendimento deste campo relacional que pretendo argumentar que vivenciar a rua é urgente. Passando pelo reconhecimento do design como projeto, como capacidade de resolver problemas, acredito que ações podem ser feitas, para e pelas mãos dos próprios moradores, em direção à ocupação efetiva das ruas. Acredito na potencialidade dos espaços públicos como catalisadores de uma comunalidade necessária e pungente. Um modo de existir mais capacitado para o enfrentamento da crise contemporânea que passa por diversos aspectos da vida cotidiana, da casa para dentro e da casa para fora. Como esses moradores poderão participar mais ativamente do uso desses espaços de maneira autônoma? 

Começo a desenhar uma proposta de invocação urbana, uma espécie de experimentação prática de arruar em três atos: provocação, ativação e concentração. Me preparo para falar sobre esse experimento numa próxima oportunidade. Com otimismo, poderei ver o cotidiano destes paralelepípedos ser completamente transformado. Meu pequeno pedaço de rua com gente dentro, ou mais precisamente, fora.

REFERÊNCIAS:

ESCOBAR, Arturo. Designs for the Pluriverse: Radical Interdependence, Autonomy, and the Making of Worlds. Duke University Press: London, 2017.

HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O Neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âiné, 2018.

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2008.

REZENDE, Vera F; LEITÃO, Gerônimo. Lucio Costa e o Plano Piloto para a Barra da Tijuca: A vida é mais rica e mais selvagem que os planos urbanísticos. Dossiê: Cidade e Habitação na América Latina – CIEC/UNICAMP. URBANA, V.6, nº 8, junho 2014.

Sobre a autora:

Fabiana Duffrayer é Arquiteta e Urbanista, conselheira do IAB/RJ e mestranda em Design no Laboratório de Design e Antropologia do PPDESDI/UERJ. Pesquisa a produção urbana espontânea aliada a tecnologias sociais e trabalhos interdisciplinares colaborativos, sobretudo em ambientes de periferia.

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