Como arruar políticas? Pergunte à população chilena!

Texto e imagens por André L. Paiva

Fiquei entusiasmadíssimo ao saber que esta edição giraria em torno de práticas para arruar políticas, já que passei 2022 dedicado a refletir sobre a necessidade de fazê-lo, a aprender com algumas iniciativas que o fizeram e a contribuir, a partir da ação, com uma incidência de baixo para cima na construção e na gestão da cidade de Petrópolis.

Tudo começou com a observação de que os diferentes agentes que integram um determinado contexto (uma cidade, um país, ou o planeta, por exemplo) costumam ter seus interesses considerados de maneira desigual nos processos de decisão, e de que minha área de atuação (assim como muitas outras) favorece a perpetuação dessa realidade ao concentrar suas contribuições nas esferas instituídas. A ideia de que a política institucional precisa ser tensionada de fora para dentro para alcançar resultados socioambientalmente mais justos foi gradualmente me parecendo mais adequada e verdadeira. Nesse caminho, os campos técnicos comprometidos com as sociedades, com a Terra e com a relação entre ambas deveriam buscar cada vez mais atuar com a população, e não para ela através das formas hegemônicas.

De tanto me inquietar, esse tema deu origem ao meu trabalho final de graduação em arquitetura e urbanismo, no qual eu e o professor Gabriel Schvarsberg trouxemos essas reflexões para o contexto das tragédias relacionadas a fortes chuvas ocorridas em 2022 na cidade de Petrópolis, que interromperam seu cotidiano e deixaram, dentre muitos impactos, 242 pessoas mortas e 2 desaparecidas. Vimos que havia uma série de ferramentas, vindas de diferentes campos do conhecimento, que mostravam os riscos que pairam sobre o território atingido e indicavam maneiras de mitigá-los, e que poderiam, no mínimo, ter reduzido a destruição, as perdas e os traumas deixados por esses episódios. Apesar disso, e embora as sucessivas gestões os conhecessem, a atenção dada à segurança ambiental por elas não esteve à altura do problema. 

O mesmo comportamento foi observado em diferentes escalas e contextos. Ele não exclui e nem se restringe a vertentes reacionárias, conservadoras ou progressistas, uma vez que permeia o sistema político institucional e o poder que, por meio dele, certos setores detêm para direcionar as decisões e os recursos em seu benefício, subvertendo os interesses e as prioridades das maiorias. Antes de falarmos do Chile, onde essa problemática também se refletiu nas últimas décadas, inclusive durante governos progressistas, podemos ter como um exemplo prático as sucessivas iniciativas governamentais e intergovernamentais de enfrentamento à crise climática. Uma síntese do descomprometimento das lideranças políticas com essa causa (que irá pôr em cheque as condições de manutenção da vida humana na Terra) pode ser vista pelo fato de que os sucessivos encontros e acordos globais sobre o tema não apenas não foram capazes de reduzir a concentração de gás carbônico na atmosfera, mas tampouco evitaram que sua taxa de aumento seguisse em ascensão.

Enquanto escrevia este texto, um levantamento da organização Global Witness apontou um dos motivos para o fracasso dessas iniciativas: na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2022 no Egito (a COP27), ao menos 636 delegados estão relacionados a indústrias de combustíveis fósseis, número maior do que a soma das delegações dos 10 países mais afetados pela mudança climática. Como comentou o jornalista nigeriano Phillip Jakpor, em entrevista à BBC sobre o fato, “se você quer combater a malária, você não convida os mosquitos”.

Sendo esse o contexto que envolve a tomada de decisões na política institucional e faz com que muitas vezes as ações não se guiem pelas urgências sociais e ambientais que deveriam ser priorizadas, é fato que a democracia necessita ser ampliada para além dos moldes usuais da governança representativa. Estando esse modelo impregnado pela influência de interesses alheios (e não raramente opostos) aos da população, é preciso que, mesmo conseguindo eleger bons e boas governantes, muito mais seja feito. Ao longo de nossa história, em diferentes culturas e lugares, foram pessoas mobilizadas que reivindicaram alterações na estrutura política e fizeram com que suas demandas fossem legitimadas por governos. Como definem Rosângela Cavallazzi e Flávio Bertoldo, são essas as forças instituintes, que de fora para dentro compõem a dialética do processo de institucionalização.

E é aí que chegamos ao Chile: para ajudar a entender como um movimento popular pode modificar completamente a correlação de forças políticas, conduzindo a balança decisória para o lado mais capaz de atender às massas, estudamos em nosso trabalho a explosão chilena, iniciada em 18 de outubro de 2019. O que no começo parecia apenas um protesto contra o aumento da tarifa no metrô da capital Santiago logo se mostrou fruto de um profundo e amplo descontentamento com a precarização da vida no modelo neoliberal, implantado a partir da Constituição de 1980, redigida durante a ditadura de Augusto Pinochet. Tal descontentamento espalhou as manifestações por ruas de todo o país e manteve a população mobilizada por meses, apesar da resposta violentamente abusiva das forças de segurança chilena, que incluía a prática proposital de disparar nos olhos de manifestantes. 

Mas a precarização em si não pode ser tida como a única razão para o Chile ter se insurgido, visto que populações em condições comparáveis nem sempre chegam a se levantar, ou a fazê-lo e permanecer em luta,  embargando a normalidade até que as mudanças necessárias ocorram. Dentre outros fatores, é necessário que se conte com um determinado grau de politização para que isso ocorra, e as ruas têm uma enorme potência enquanto espaço político e politizador.

As ruas chilenas foram o berço e o palco de uma forte cultura de manifestações, que ao longo de anos difundiram e aprofundaram na sociedade reflexões acerca de temas específicos, como fizeram as passeatas feministas, as revoltas estudantis contra a financeirização do sistema educacional e as marchas em oposição ao sistema previdenciário privado e baseado na capitalização individual. Essa série de movimentos certamente contribuiu para que a explosão eclodisse e prosperasse. Do mesmo modo, cremos nós, cumpriram esse papel os inúmeros discursos gráfico-textuais gravados nas ruas de cidades chilenas, ou ao menos da capital Santiago. Essas verdadeiras peças de pedagogia urbana informam, questionam e coletivizam mal-estares que, na perspectiva neoliberal, tendem a ser tratados de maneira individual em cada âmbito familiar, onde busca-se superá-los a partir da ascensão financeira. Ou então, no mínimo, rompem com a ideia de que há uma normalidade neste modelo. 

Ao voltar a Santiago, de onde escrevo neste momento, percebi que muitos espaços da cidade ainda são um livro aberto sobre o que ocorreu no país, com novas páginas sendo escritas, grifadas e rasuradas a todo instante. Além do registro histórico de um movimento plural, difuso e espontâneo que não via na estrutura política vigente uma saída para os problemas enfrentados, as intervenções espalhadas pelos muros, bancos, escadas, tapumes e esculturas são, sobretudo, uma zine de altíssimo alcance, que traz, aprofunda e dialoga sobre inúmeros temas. As ruas aqui são plataformas de uma construção política a partir das pessoas, e não apenas quando seus corpos se reúnem nelas por um pleito específico, ou reafirmando uma série de pleitos transversais, como na explosão. Espero que estes registros fotográficos, além de ilustrar o cenário descrito, consigam ampliar o imaginário das funções possíveis ao espaço público enquanto veículo, discurso e ação política. Arruemos!

Estas primeiras fotos são da região da Plaza de la Dignidad (conforme foi renomeada pela explosão), epicentro das manifestações e dos confrontos na cidade. Aqui se concentram pichações que relatam a agressividade e a tensão presentes entre a sociedade e as forças de segurança, especialmente em relação aos carabineros (popularmente chamados de pacos, e com frequência de maneira pejorativa), que equivalem às polícias militares brasileiras. Este sentimento pode ser lido em uma sigla presente por essas fotos, que se repete pelas ruas de Santiago e também aparecerá em algumas das próximas: ACAB, do inglês “all cops are bastards” (todxs policiais são bastardxs).

Ainda na Plaza de la Dignidad, a população criou o Jardín de la Resistencia, um espaço sobre a luta e em homenagem às pessoas presas ou mortas pelas forças de segurança nos confrontos. O SENAME, citado na pichação do Chaves, é o lugar onde pessoas menores de idade apreendidas são levadas. As bandeiras fincadas na terra são do povo originário mapuche, que há décadas luta para defender seu território na região chilena da Araucanía. As reivindicações mapuche foram amplificadas e abraçadas pela explosão e a nova constituição proposta, que só se tornou viável a partir do movimento, propunha que o Chile se tornasse um estado plurinacional, o que aumentaria o poder decisório dos povos originários.

A proposta da nova Carta também pautou os discursos urbanos de forma diversa, tanto na elaboração discursiva — indo de um simples apruebo (em campanha do voto pela validação do documento no plebiscito) até artes que ilustraram e desdobram o conteúdo de seu texto — quanto na opinião a seu respeito. O movimento anarquista manifestou seu não apoio a nenhuma das opções a serem eleitas pela população, reafirmando sua posição contrária à estrutura do Estado. No dia 4 de setembro de 2022, 61,86% do eleitorado que compareceu às urnas decidiu pela recusa da constituição apresentada.

O lambe-lambe da última foto ilustra bastante a descrença chilena na capacidade da política institucional atender às necessidades e interesses populares. Nela, o ex-presidente Sebastián Piñeira, pertencente à direita chilena, está por trás da face de Gabriel Boric, presidente progressista, eleito neste ano, que em 2011 foi uma das cabeças das revoltas estudantis.  

Alguns murais assumem a função de que acontecimentos que foram difundidos não caiam no esquecimento, como o graffiti que relembra o episódio em que Anthony Araya, um adolescente de 16 anos, foi jogado no Rio Mapocho por um carabinero. Já outros se tornam espaços de difusão sobre violações e traumas que tendem a ser individualizados. A foto acima mostra um trecho de um mural sobre violência de gênero, apropriado por pessoas que registraram e expuseram abusadores sexuais. 

As Administradoras de Fondos de Pensiones (AFPs) têm grande responsabilidade na desestabilização econômica da população e em sua consequente mobilização, que acabou culminando e fortalecendo a explosão de 2019. Elas são o corpo e a alma do sistema previdenciário privado que vigora no Chile, baseado na capitalização individual. O resultado desse modelo pôde ser visto quando 90,9% da primeira geração de pessoas que se aposentaram após ele ter sido implementado passaram a receber menos do que 50,6% do valor do salário mínimo. É difícil se deparar com esses dados e não concordar que “as AFPs devem morrer pra que os aposentados possam ‘viver’”!

“Viu as mensagens que te deixo na cidade?

REFERÊNCIAS:

CAVALLAZZI, Rosângela Lunardeli; BERTOLDO, Flávio Soares. Desafios da cidade standard. In: CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli; FAUTH, Gabriela (org.). Cidade standard e novas vulnerabilidades. Rio de Janeiro: PROURB, 2018. p. 85-101.

Sobre o autor:

André Luís Paiva é arquiteto e urbanista e, ocasionalmente, relembra a si mesmo que também é fotógrafo. Graduou-se na Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ e nela permanece pesquisando a mobilidade urbana em Petrópolis, cidade em que integra iniciativas que visam contribuir, de baixo para cima, com sua construção e gestão.

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