Ajude-me a sair da casa da sogra. Um diálogo com as ruas da cidade

Texto e imagens por André Rosster e Davi Mekler

Ao andar pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro é possível perceber como seus espaços e superfícies são tomados por uma enorme variedade de códigos gráficos de diferentes naturezas. Letreiros, outdoors, lambe-lambes, placas de sinalização, pixações e grafites são alguns exemplos dos diferentes tipos de inscrições que a todo instante se sobrepõem, se misturam e se embaralham nas ruas da cidade, ocupando superfícies como muros, portões, janelas, postes, viadutos, fachadas de casas, de estabelecimentos comerciais, empenas de prédios, portas de trem, assentos de ônibus e até mesmo o chão.

Olhando para a grande pluralidade de técnicas, linguagens, ferramentas e superfícies, nota-se como as pessoas utilizam e tiram proveito dos espaços da cidade a serviço de coisas muito distintas. Tem quem se utilize da rua para oferecer serviços, para protestar, para reivindicações políticas e sociais, manifestações religiosas, para sinalizações de trânsito, para desenhar, para mandar um recado, para gravar seu nome, para demarcar um território, para pedir algum tipo de ajuda, para divulgar uma marca ou um produto, para vender um imóvel e um monte de outras coisas. Nota-se também como essas expressões podem ir de um âmbito muito amplo e genérico, como em outdoors com propagandas de grandes marcas, até um âmbito muito íntimo e peculiar, como em um pedido de ajuda gravado com canetinha sobre um pequeno pedaço de papel colado em alguma parede do centro da cidade.

Além de serem um resultado, um produto de cada localidade, as intervenções urbanas funcionam como retratos dos espaços. Pensando no espaço urbano como um jogo, podemos entender as intervenções gráficas como pistas desse jogo.

Através delas, conseguimos perceber e entender muito sobre cada local, cada contexto e cada situação. Conseguimos constatar a ausência do poder público em algum lugar quando vemos que as sinalizações são feitas manualmente pela população. Conseguimos perceber que um local é controlado por uma determinada facção criminosa quando vemos suas siglas gravadas nas paredes. Conseguimos perceber que houve uma manifestação política em um determinado local quando vemos o chão repleto de santinhos.

Além de atuarem como pistas, também é possível pensar nessas diferentes expressões como as regras do jogo. Elas são fatores determinantes para o funcionamento do espaço urbano. Têm a capacidade concreta de transformar os espaços e as experiências e relações que surgem a partir deles. Um aviso de “Não estacione”, uma sinalização de trânsito, uma sigla de determinado grupo, uma propaganda de algum serviço; tudo isso interfere nos espaços, e, muitas vezes, determina como as pessoas vão se relacionar com ele. Por conta dessa capacidade, percebemos como as intervenções urbanas não são apenas uma forma alternativa de utilização dos espaços de uma cidade, mas também um meio através do qual pode-se construir novas possibilidades de espaço urbano e novas possibilidades de cidade.

Compartilhamos aqui parte da produção e das reflexões elaboradas no nosso trabalho de conclusão do curso de Design da ESDI-UERJ apresentado em meados de 2022, que este projeto propõe observar, pensar e contar sobre as várias formas de expressões gravadas no espaço urbano e sobre a rua como espaço para tais inscrições. O que queremos com essa pesquisa é fazer uma leitura desses mecanismos de expressão/comunicação que consistem em usar a rua como veículo de comunicação através da gravação de elementos gráficos nas diferentes superfícies da cidade. Desejamos perceber as potencialidades e as características e peculiaridades desses mecanismos decorrentes do fato de se utilizar a rua como veículo para gravar ou transmitir alguma coisa.

Pensamos o projeto como um diálogo com a cidade. Uma tentativa de estabelecer correspondências com a rua através desses mecanismos de comunicação tão recorrentes no Rio de Janeiro. Uma espécie de exercício de leitura e escuta da cidade através dos elementos gráficos presentes no espaço urbano. É uma tentativa de entender como é possível usar a cidade para dizer coisas e ao mesmo tempo perceber como a cidade se comunica através deste jogo comunicacional urbano, que é tão caótico. Uma tentativa de perceber como essas inscrições modificam concretamente os espaços e a forma como as pessoas se relacionam com a cidade, e de perceber como a cidade vai misturando, modificando e sobrepondo as diferentes inscrições, gerando diversos ruídos e distorções.

Esse diálogo que construímos com a cidade aconteceu em algumas etapas que funcionaram quase como perguntas e respostas. Uma etapa levava a outra. Cada uma servia ao mesmo tempo como um fim e como um ponto de partida, como uma provocação para a etapa seguinte. De maneira bem ampla e superficial classificamos as diferentes etapas da seguinte maneira: Recolher; Digerir; Provocar; Deixar a rua digerir; Contar.

Na primeira etapa desse diálogo buscamos encontrar maneiras de começarmos a olhar e “ouvir” a cidade. Tentamos pensar em alguns modos possíveis para começarmos a olhar para a rua e para os códigos gráficos gravados no espaço urbano.

Como começamos o projeto durante a Pandemia, não pudemos, em um primeiro momento, estar presente na rua da forma como gostaríamos e achávamos necessário. (Isso só foi possível em um momento já mais avançado do projeto.) Decidimos então começar essa observação/leitura/escuta a partir de algumas perspectivas diferentes: Realizamos trajetos aleatórios pela cidade do Rio utilizando o Google Street View e tiramos prints ao longo dos trajetos. Assistimos alguns filmes e capturamos frames. Mais tarde, com a pandemia já mais controlada, também começamos a realizar trajetos pelas ruas, produzir registros fotográficos e coletar materiais como panfletos e flyers.

A partir desse primeiro processo de observação e escuta da rua,  e desse processo de recolha de materiais, começamos a pensar em como poderíamos responder a tudo que a cidade havia despertado em nós. Desenvolvemos, então, 41 intervenções gráficas (sendo a grande maioria lambe-lambe) com diferentes conteúdos, linguagens e dimensões e as gravamos em diferentes locais e superfícies da região central da cidade do Rio.

Para executarmos esse conjunto de intervenções gráficas pelas ruas da cidade, juntávamos todos os materiais que havíamos produzido em um envelope e saíamos andando pelo centro da cidade sem um destino nem um trajeto definido (apenas 2 das 41 intervenções foram pensadas para um local específico). Ao longo desses trajetos, íamos procurando lugares e situações propícias para gravarmos algum dos materiais que estavam na pasta. Não encarávamos como uma obrigação ter que gravar todos os materiais preparados em um mesmo dia. Só executávamos algo se achássemos um bom local e uma boa situação para cada material específico. Em muitos dos trajetos realizados, inclusive, passávamos várias vezes em um mesmo local até identificar uma boa oportunidade para fazermos as intervenções.

Quase sempre que iniciávamos um novo trajeto, passávamos, primeiramente, nos locais onde já havíamos feito alguma coisa para observar e registrar o que tinha acontecido. Ao longo desses trajetos, também aproveitávamos para continuar registrando a cidade e coletando novos materiais. É importante comentar, também, que não tínhamos uma quantidade de intervenções definida de antemão. Ao longo do processo, um experimento foi nos levando ao outro. Cada intervenção que realizávamos nos dava novas ideias e nos dava vontade de fazer novas coisas.

Ao realizarmos essas inscrições pela cidade, nossa atenção não estava voltada exatamente para o conteúdo de cada intervenção. Nossa maior preocupação era gravar uma quantidade grande de coisas pelas ruas e ficar vendo o que aconteceria. Queríamos observar o que essas inscrições fariam com os espaços e perceber o que a cidade faz com os códigos gráficos gravados em suas superfícies.

Por isso decidimos deixar as intervenções na rua e acompanhá-las e registrá-las com o passar do tempo. Queríamos ver como a cidade iria digerir e responder a essas inscrições, como elas iam se modificar e assumir diferentes formas ao longo dos dias.  Estávamos tão interessados no trabalho da rua quanto no nosso. Queríamos que a cidade exercesse um papel de coautoria no projeto.

Por fim, buscamos pensar em uma maneira para que pudéssemos contar e mostrar tudo que fizemos e tudo que percebemos a partir desse diálogo que construímos com a cidade. Começamos, então, a reunir todos os materiais que havíamos produzido e coletado. Criamos sequências constituídas por duplas de imagens estabelecidas a partir de diferentes relações que enxergamos e criamos entre os materiais.  Estabelecemos relações de naturezas muito distintas. Relações semânticas, de cor, linguagem, localização, entre outras. Através dessas relações buscamos evidenciar aspectos como: como foi o processo de nossa pesquisa; como as coisas que recolhemos e produzimos viraram intervenções gráficas urbanas; como a cidade agiu sobre essas inscrições; como as diferentes perspectivas através das quais olhamos para a rua nos permitem enxergar a cidade de maneiras distintas; como existe uma variedade enorme de linguagens gráficas gravadas nas ruas da cidade do Rio; como as pessoas usam os espaços e superfícies da cidade a serviço de expressões de caráter muito distintos; como as intervenções vão de um âmbito muito amplo e genérico a um âmbito muito pessoal e peculiar; como as intervenções urbanas são, também, o registro de uma ação; como os apagamentos também são intervenções; como os acúmulos e sobreposições geram acasos de comunicação e acasos visuais; como as superfícies da cidade funcionam como uma espécie de “fóssil” das inscrições que já ocuparam aquele espaço, como elas nos mostram os resquícios de intervenções que estiveram ali; como é possível fazer uma leitura de um determinado local ou de uma determinada época ou acontecimento a partir das inscrições gravadas nas superfícies; como as intervenções são forjadas pelos lugares; como as diferentes intervenções formam uma espécie de mosaico de diferentes experiências de cidade; entre outros.

A partir dessas sequências resolvemos desenvolver uma peça gráfica. Produzimos lambe-lambes formados pelas imagens em sequência, que, apenas através de vincos, dobras e cortes, também virassem cadernos. Ao todo fizemos 4 lambes e 36 cadernos, relacionando 576 imagens. Esse material impresso funcionava como uma espécie de diário visual da pesquisa, quase como uma “simulação” de uma caminhada pela cidade observando as inscrições gráficas gravadas nas diferentes superfícies.

Apesar de ter como produto final uma peça gráfica, é importante deixar claro que esse não é um projeto gráfico ou um projeto editorial. Tampouco é um projeto sobre a produção e execução de intervenções urbanas. Também não é um estudo sobre nenhuma técnica ou linguagem específica de intervenções gráficas, nem uma tentativa de classificar ou estabelecer divisões entre as inscrições de diferentes naturezas que encontramos nos espaços públicos.

É um projeto sobre nós como observadores, ouvintes e interlocutores da rua. Uma tentativa de estabelecer uma relação íntima com a cidade, de perceber a cidade de dentro dela mesma. Um projeto sobre inventar táticas para conseguirmos estabelecer correspondências com a rua, para conseguirmos responder e ser respondidos, provocar e sermos provocados. Sobre inventar maneiras de olhar para esse “jogo comunicacional urbano” para conseguirmos ler e ouvir a cidade. Uma espécie de alfabetização na linguagem gráfica urbana para podermos nos colocar dentro do “diálogo” constante e infinito que ocupa as diferentes superfícies da cidade.

Nessa prática de escuta e leitura das ruas não estamos preocupados apenas com a função ou intenção original das inscrições. Estamos atentos a quando as funções se confundem. Estamos atentos a quando as linguagens se perdem, se misturam, se embaralham e se subvertem. Estamos interessados em olhar e perceber a rua como um organismo vivo, como um ambiente em constante transformação. Queremos olhar para esses movimentos constantes da rua, para esses diálogos infinitos que preenchem as superfícies da cidade. Queremos observar essas “conversas” que a todo instante trazem novas provocações, criam novos sentidos e levam a novos lugares, atentos aos ruídos, distorções, sobreposições e multiplicidades que a cidade produz a todo instante.

Sobre os autores:

André e Davi são formandos da Escola superior de desenho industrial (Esdi/UERJ), onde se conheceram e participaram do projeto de extensão Pé na Rua.  Ambos tem um grande interesse em estar presentes nas ruas da cidade, olhando para as diferentes práticas que ocupam o espaço urbano e sempre atentos aos acúmulos e sobreposições de elementos gráficos nas diferentes superfícies da cidade.

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