Texto e fotos por Giulia Del-Penho
Guardo em minha memória aquilo que me fez sentir o que hoje é constante. A fim de construir uma narrativa sobre o começo de tudo isto — algo que considero ser de extrema relevância para estancar esta hemorragia nacional —, recorrerei a um trabalho produzido durante minha graduação e que por vezes orbita minhas reflexões teóricas. Portanto, tentarei através de uma breve reorganização, ressignificar esta experiência que me atravessou tão fortemente.
“Anacrônicos de uma pandemia” é uma intervenção urbana em formato lambe-lambe, reproduzindo em tamanho real (aproximadamente 170 cm) fotografias históricas de pessoas que enfrentaram a pandemia do vírus influenza em 1918, que ficou mundialmente conhecida como “Gripe Espanhola”.
Essas fotos históricas da pandemia de 1918 vieram à tona em meados de 2020, quando a infestação do novo coronavírus (Covid-19) tomou proporções mundiais, deixando de ser chamada de epidemia e se tornando, portanto, uma pandemia. O medo e a falta de informação foram aspectos muito presentes nos primeiros meses de enfrentamento ao vírus. Muito se falava sobre a falta de diretrizes, de normas de segurança… ninguém sabia direito o que fazer, afinal, ninguém nunca tinha passado por aquilo antes.
Mas só que tinha. As informações sobre a gripe espanhola começaram a aparecer cada vez mais, com possíveis instruções do que aprendemos com a pandemia de outrora. A primeira, óbvia, era sobre o uso de máscaras, que se tornou obrigatório já naquela época. As instruções do uso em espaços compartilhados vinha geralmente acompanhada com a foto que hoje é o carro-chefe deste projeto: uma moça, protegida pela máscara, carregando um cartaz com os dizeres firmes e diretos: “use máscara ou vá pra cadeia” (fotos 1 e 2). A objetividade e clareza dessa mensagem foram meu ponto de partida, talvez por apresentar um contraponto às orientações ineficazes e imprudentes que recebemos do governo em âmbito nacional. Nas poucas vezes em que saía de casa, me incomodava muito lugares onde sempre havia uma profusão de pessoas sem nenhum tipo de proteção facial. selecionei três desses locais em que eu conseguiria, em segurança e com distanciamento social, colar a imagem da “moça do cartaz”. Era de se esperar que ela não fosse completamente bem recebida: duas delas tiveram os dizeres vandalizados em menos de 24 horas após sua instalação.
Ao compartilhar o resultado em minhas redes sociais, recebi muitas mensagens indicando possíveis lugares para receber a intervenção, e também frases de alerta para serem veiculadas junto. Daí então veio o gato de máscara, feito no muro em frente a um catcafé, e o casal sáfico, que está colado nos arredores de um bar LGBTQIA+.
Nunca foi minha intenção que os lambes fossem permanentes, nem que a ação se estenderia por tanto tempo. Esperava que eles durassem um mês, quarenta dias… o mesmo tempo que esperávamos que durasse a pandemia. Por isso mesmo a escolha do lambe-lambe, técnica que sabia que não seria permanente… A ideia de que aquele alerta tão extremista fosse se apagando à medida em que voltássemos à normalidade me parecia poética.
Bem sabemos, agora, que essa ideia, apesar de bonita, era também muito otimista para o que estávamos prestes a enfrentar. Com o avançar do segundo ano em pandemia, os lambe-lambes continuam sendo colados por aí, mas as palavras de ordem que acompanham as fotos tiveram que sofrer algumas alterações. Nesse momento, já em outubro de 2021, placas que antes diziam coisas simples como “ fique em casa!”, agora exigem a necessidade de informações atualizadas, pois, ao que parece, o vírus da desinformação segue se espalhando e criando novas mutações, assim como o Sars-CoV-2. Na composição mais recente, coloquei junto a fala de uma amiga médica, sobre a conscientização a respeito do uso de máscaras — o que não deixa de ser triste, dada a necessidade dessa informação ser ressaltada, a essa altura dos eventos. Aguardo, com esperanças, o dia em que uma nova leva de imagens a serem coladas trarão diretrizes sobre a normalização da vida pós-pandemia, carregando mensagens da vida renascendo em um novo tempo.
Sobre a autora:
Giulia Del-Penho é formada em Direção Teatral pela Escola de comunicação da UFRJ, mestranda em design pelo PPDESDI da UERJ, iluminadora, produtora e artista de rua nas horas vagas. Trabalha principalmente com as técnicas de stencil e lambe-lambe e tem o espaço urbano como sua grande inspiração.