Texto e imagens por Nathalia Giovannini Botelho
O olhar para o patrimônio histórico-cultural da cidade pode ser atraído por diferentes estímulos, e provoca discussões que atravessam várias instâncias sociais, de um papo na mesa do bar, às provocações evocadas pelos noticiários, mas também em pesquisas técnicas e debates acadêmicos. Aqui não pretendo comparar ou classificar essas situações como melhores ou mais relevantes, vejo todas elas como manifestações, reações e desdobramentos. São situações que não se isolam umas das outras, pelo contrário, de algum modo, uma implica a outra, em um ciclo que se retroalimenta.
Este texto é fruto de sementes que foram lançadas por muitos e em diversos lugares, e assim é também uma maneira de reconhecer a luta e agradecer o esforço intelectual, de resistência e insistência das vozes que soam, mesmo quando tentam ser silenciadas. Uso a metáfora da semente para me referir às provocações e impulsos que me motivaram a pesquisar sobre este tema. Esta escolha não é acidental, seu motivo pulsa forte em cada coração que parou no dia 14 de março de 2018, quando Marielle Franco foi assassinada. E o meu parou.
A semente que se constitui como marco que deu início a esta pesquisa foi lançada oficialmente na madrugada do dia cinco de março de 2019, na rua Marquês de Sapucaí, Santo Cristo, região central do Rio de Janeiro. É, foi no Sambódromo, na passarela do samba, que o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, apresentou ao público o enredo “História pra ninar gente grande”.
Como bem diz Luiz Antônio Simas, “o carnaval se inscreve na história da cidade como um aguçador de tensões” e o desfile da “verde e rosa” tensionou o público presente, o que assistia pela televisão ou acompanhava pela internet. A provocação não foi fugaz, era semente, e ainda hoje o desfile se desdobra em conversas, referências visuais, artísticas, políticas e em outras pesquisas, inclusive esta.
O desfile apresentou alguns famosos personagens dos livros de história do Brasil, mas ao contrário do modo como são comumente apresentados, não estavam ali como heróis e heroínas. A construção do desfile tensionava a narrativa heroica oficial, contextualizando as disputas históricas nas quais esses personagens estiveram envolvidos. Iluminando o outro lado da história, a agremiação revelava em suas alegorias e fantasias outros nomes, outros rostos, ainda hoje negligenciados e desconhecidos por muitos brasileiros e brasileiras. A comissão de frente (ala coreografada que abre o desfile da escola de samba) trouxe os “heróis emoldurados” apresentando personagens que estão dentro e fora dos recortes retratados, e a disputa que se dava na coreografia pela visibilidade e distinção marcada pelas molduras, fizeram marca e, ainda hoje, vibram na memória daqueles que assistiram ao desfile.
Comissão de frente, Mangueira, 2019
O samba-enredo, que tinha entre seus compositores uma mulher, a Manu da Cuíca, reforçava o que era visto na avenida e sincopava ao som dos nomes dos seus heróis de barracões, de mulheres, tamoios e mulatos. Fato é que a escola verde e rosa tirou a poeira dos porões e embalada pela forte bateria e seus famosos tamborins, riscou o chão da avenida, deixou marcas que despertaram sementes. Forte, com a harmonia e evolução sem problemas, o desfile arrebatou o coração do público e do júri, e a escola foi consagrada campeã de 2019. Com o passar do tempo, outras sementes foram sendo lançadas e em mim despertaram, no chão que ainda vibrava (e vibra) o samba da mangueira.
No dia 25 de maio de 2020, período em que se iniciava um dos grandes picos da pandemia causada pelo COVID-19, George Floyd, um cidadão norte-americano negro foi assassinado por um policial. As circunstâncias do crime são absurdas, chocam e despertam sementes: uma série de manifestações que bradavam as palavras que dão nome ao movimento internacional de luta contra a violência direcionada às pessoas negras: “black lives matter” – vidas negras importam. As ondas de protestos eram noticiadas diariamente, mas tiveram sua visibilidade impulsionada quando certos “heróis emoldurados” passaram a ter suas representações públicas, em estátuas e bustos, atacadas e destruídas.
Aproximadamente um ano depois dos protestos contra a violência racista, tivemos no Brasil a organização de atos que mobilizavam, em várias cidades, protestos contra a política do presidente J***B********. Aqui, deliberadamente, há uma escolha: não nomearei os sujeitos que fomentam o discurso da extrema-direita. Ocultar o nome deles impede a localização e contabilização em buscas por texto ou conteúdo. Com isso não diminuo a gravidade das questões que fundamentam sua postura e ideais, mas, justamente por não ter como foco explícito o debate dessas questões, neste texto a visibilidade será dada a outros nomes.
Durante o ato em São Paulo, um grupo de manifestantes ateou fogo na estátua de Borba Gato, um bandeirante reconhecido por suas missões de captura e escravização de negros e indígenas. Após o ataque à estátua de Borba Gato, o tema dos monumentos e homenagens voltou ao debate popular e acadêmico, quando o imponente Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, amanheceu, mais uma vez, como destaque nas manchetes, coberto de pichações e de tinta. Pouco tempo depois, no Rio, outra manifestação, desta vez contra o BioParque – antigo zoológico – que instalou no ambiente “Savana Africana” estátuas caricatas de pessoas negras, que após reportagens e manifestação parlamentar, foram retiradas. E, mais recentemente, em maio de 2022, ganhou destaque o seguinte caso: no Rio, policiais civis do CORE derrubaram à marretadas e, com auxílio do “caveirão” – carro especial para operações policiais – um memorial. Erguido pela comunidade do Jacarezinho, o memorial era simples: um modesto pedestal, em concreto e pintado de azul com uma placa de inox, listava o nome das 28 pessoas que tiveram suas vidas interrompidas em razão da operação policial mais letal da história do Estado do Rio de Janeiro. Esta ação, defendida pelo governador C******C*****, desvela, com clareza, a disputa pelo domínio da narrativa e da representatividade através dos artefatos erguidos em memória e homenagem na cidade.
Policiais da CORE no Jacarezinho
As notícias, as polêmicas e os debates sobre o patrimônio histórico-cultural, especialmente os monumentos que compõem nossa cidade e nossa paisagem é atual, pulsante, e abrange questões para além da conservação, restauro e revitalizações. Ele põe à mostra as disputas pelo domínio da representação, pela caneta que escreve a história. Não há gratuidade na implantação ou retirada de um monumento, pois são objetos simbólicos que buscam rememorar pessoas, movimentos, ideais. A artista e professora Giselle Beiguelman afirma que o debate em torno dos monumentos desvela uma série de “memoricídios”, que são consequência planejada de mecanismos de investimento e desinvestimento, que privilegiam uns com a eliminação de outrem. Assim, entendo que o levante contra certos monumentos pode ser visto como um sintoma do enfrentamento que reclama pelo direito à memória, através da revisão e diversificação da narrativa, bem como da disputa por territórios simbólicos. Seria, portanto, uma reação ao “memoricídio”. Beiguelman pontua ainda que o direito à memória diz respeito à cidadania, ou mais precisamente, ao tipo de cidadania que as pessoas têm ou não em determinada sociedade, e, que o direito à memória é impossível de ser descolado do direito ao espaço público.
O Rio de Janeiro tem uma história particular. Podemos dizer que essa cidade se formou, transformou e se constitui em um mar revolto de estatutos políticos e demonstrações de poder. Assim, tendo em vista a questão sobre o direito à memória; a disputa pelos territórios simbólicos; a construção de uma narrativa histórica e, sabendo que a escolha dos sujeitos não é leviana, é importante atentar ao perfil de nossos sujeitos homenageados. Se as decisões sobre o que deve ser lembrado, e como deve ser lembrado, tem relação com a moral vigente de uma determinada sociedade e com suas motivações de cunho ideológico e político (BEIGUELMAN, 2019), deveria ser possível verificar ecos entre as pautas reivindicadas pela sociedade contemporânea carioca e a instituição de novos monumentos na cidade. Em teoria, pela ascensão da visibilidade das pautas dos grupos minoritários, haveria uma preocupação em não afirmar mais, pelo menos não tão contundentemente, uma narrativa hegemônica, mas pluralizar. É de se supor que a implantação de novos monumentos deveria acompanhar o crescimento e expansão do Rio de Janeiro e que, por trás das faces de bronze, estariam representadas identidades e histórias que firmam e afirmam a força da diversidade.
De modo geral, sujeitos escolhidos para receber um marco em sua memória, ou são vítimas de barbáries, ou são pessoas descritas como distintas, são responsáveis por atos heroicos, corajosos e revolucionários. São pessoas entendidas (por alguns) como merecedoras de serem vistas e lembradas publicamente (por todos), através de uma inserção perene na cidade. Esses objetos e representações são colocados então em protagonismo na paisagem, para serem admirados, e de certa maneira, exaltados cotidianamente.
“Chamar-se-á então “monumento” todo artefato (…) ou conjunto de artefatos deliberadamente concebido e realizado por uma comunidade humana, independentemente da natureza e das dimensões (…), a fim de lembrar, para a memória viva, orgânica e afetiva dos seus membros, pessoas, acontecimentos, crenças, ritos ou regras sociais constitutivas de sua identidade”
— Françoise Choay
A definição de monumento desenvolvida por Choay, aponta que estas representações são mais que objetos construídos. O monumento pode ser entendido como o artefato que estabelece uma função simbólica de identificação com a comunidade da qual ele faz parte. É um elemento inserido intencionalmente para fins memoriais e são definidos por comunidades – fragmentos de uma sociedade – que, no tempo presente, desejam estabelecer um marco memorial para o tempo futuro. Fica evidente que não se pode tomar os monumentos ingenuamente e estabelecer critérios que não levem em consideração as diferenças existentes entre as comunidades que compõem uma dada sociedade, pois essas diferenças afetam diretamente as escolhas possíveis para a concepção de um monumento e que, portanto, a forma final de uma homenagem é um jogo que relaciona fatores ideológicos, políticos e econômicos.
Olhar criteriosamente para os monumentos revela disputas pelo território, pelo espaço público, e diz sobre o direito à memória e as políticas de memoricídio. Nesse sentido, este texto procura “botar lenha na fogueira” e fomentar este debate. Com humildade, almeja ser, também, semente ou ao menos vibrar de modo que interrompa a dormência de outras sementes.
Resumindo um longo caminho, foi, através de um levantamento categorizado, que pude observar os objetos em foco através de uma compreensão sistêmica e verificar se os novos monumentos ecoam ou não as demandas das políticas de afirmação de diversidade. O levantamento foi feito com base no inventário dos monumentos cariocas, no guia do patrimônio da cidade e em reportagens. Os dados gerados por este levantamento se desdobraram em uma série de produções gráficas.
O Rio de Janeiro, segundo inventário disponibilizado pela secretaria municipal de conservação (SECONSERVA), possui 1.377 monumentos catalogados e divididos em seis categorias tipológicas: fontes e chafarizes; estátuas e bustos; obras públicas; representações religiosas; esculturas e marcos. No esforço de quem busca entender as homenagens enquanto um grande conjunto de artefatos construídos e um conjunto de sujeitos escolhidos para se constituírem como símbolo de rememoração e, para tecer uma rede que relaciona os temas de interesse, estabeleci como foco os monumentos (bustos, estátuas, esculturas ou intervenções públicas não efêmeras) erguidos na cidade do Rio de Janeiro como homenagens explícitas. Homenagens que visam perenizar a presença de sujeitos na paisagem carioca, até meu último levantamento, realizado em julho de 2022, somam 388 monumentos, o primeiro deles inaugurado em 1862 e o último em julho de 2022.
Para o levantamento estabeleci categorias que ajudam a esclarecer o perfil das pessoas homenageadas e dos monumentos. No decorrer da pesquisa as categorias sofreram diversas modificações, até chegar à seguinte configuração: nome do monumento; sujeito individual ou coletivo; identificação do sujeito; origem ou nacionalidade; sexo; cor; natureza da atividade; atuação; iniciativa e motivação para homenagem; forma do monumento; materialidade principal; local atual de implantação; zona atual de implantação na cidade; data de inauguração e, tipologia.
Amostra do levantamento
Além do levantamento categorizado, fui reunindo em dois painéis imagens dos monumentos e fotografias ou pintura dos sujeitos, e, ver o rosto destas pessoas e perceber como cada uma era representada, foi estarrecedor. De repente me vi encarando centenas de homens brancos de olhar altivo, cheios de si. E, para compreender o tamanho do abismo entre as pessoas homenageadas, cruzando os dados de algumas categorias do levantamento, produzi de uma série de infográficos que permitem a quantificação e visualização com mais rapidez dos dados presentes na tabela.
E as imagens não deixam dúvida: a maior parte (maior parte mesmo!) dos monumentos rememora e comemora os atos de indivíduos brancos do sexo masculino.
Quantitativo dos sujeitos homenageados em monumentos cariocas
Para dar mais precisão ao fato, que fique claro: dos 388 monumentos cariocas inventariados apenas 7,73% são homenagens a grupos ou coletivos, 90,98 % são dedicados a homens e 80,41% para pessoas brancas.
Em relação a distribuição desses objetos pela cidade, hoje, as regiões centro, com 32,22%, e a zona sul, com 33,25%, são as que concentram maior número de monumentos. Em seguida temos a zona norte com pouco mais de 20%, a zona oeste com aproximadamente 10% e, 3,5% estão recolhidos no depósito municipal.
Mapeamento dos monumentos
A localização dos 388 monumentos inventariados em mapa permite ver claramente as regiões e localidades que as homenagens se concentram. É importante ressaltar que o mapa apresenta uma percepção numérica contemporânea, ou seja, achata todas as camadas históricas e reúne em um só plano todas as homenagens erguidas em monumentos, mas será possível creditar a concentração dos monumentos nas regiões do centro e zona sul apenas como um reflexo do acúmulo histórico que testemunha a expansão da cidade?
Será que uma amostragem parcial revelaria que a construção da narrativa – através dos monumentos que reforçam uma perspectiva única e um tipo de sujeito – se transformou? A resposta é não, para as duas perguntas.
Indicativo do acúmulo histórico de monumentos nos zoneamentos
Indicativo pontual da implantação histórica de monumentos por zoneamento
Os gráficos relacionam os períodos políticos que constituem a história do Rio de Janeiro, a implantação de monumentos e a região em que foram implantados, evidenciando que o acúmulo histórico, de fato, contribui para que as regiões centro e zona sul tenham uma maior concentração de homenagens, mas constatam que não houve deslocamento proporcional de investimento para homenagens em outras zonas ou demonstre que essa diferença tenda a diminuir.
Quantitativo de homenagens a mulheres por zoneamento
A zona sul carioca, região que reúne quase metade dos monumentos a mulheres, exclui, completamente, as mulheres não brancas de suas homenagens. As regiões que mais concentram monumentos – para ambos os sexos – são justamente as que apresentam maior desigualdade entre brancos e não brancos na balança. Coincidência?
Pedro I declara aos seus
A diversidade das atividades representadas também escancara o descompasso do reconhecimento através de homenagens às pessoas não brancas relacionadas à política e ciência. De modo geral, os sujeitos não brancos têm como maior motivação, homenagens por atividade artística. O que sinaliza um avanço pelo reconhecimento da importância das matrizes africanas e indígenas para a cultura brasileira, denuncia, por outro lado, a ausência desses sujeitos nos espaços de poder e o não reconhecimento de outros saberes como científicos, e de outras formas de ação social como políticas. Ou seja, as homenagens são fundamentalmente movidas por visão e compreensão ainda eurocêntrica das atividades, reforçando a construção de uma narrativa monolinguista.
A solução para equilibrar a balança não passa necessariamente, e exclusivamente, pela implantação de outros monumentos pela cidade. Mais do que simplesmente garantir uma representação – compreendendo as demandas atuais como um check-list pragmático – é preciso atentar ao modo, à maneira pela qual se representa, à escala, à implantação, afinal, às relações visuais – ou não – que estes objetos proporcionam. Todas estas operações, não são naturais, são decisões tomadas a partir de um referencial dominante de viés colonial. Será que ao repetir a fórmula padronizada de homenagem, não estamos também reforçando o discurso daquela centena de olhares presentes na cidade?
As benesses dos barões
“O entorno material, os objetos que nos circundam, as ruas, os quarteirões e a casa em que vivemos são os quadros materiais da memória e possibilitam que as pessoas permaneçam unidas enquanto grupo, e mais do que isso, é a permanência das coisas que dão o suporte necessário para a memória coletiva e alimenta uma tradição. O passado, que se faz presente através dos objetos possibilita que nos reconheçamos neles, faz com que encontremos uma proximidade com as gerações anteriores nessa linha de transmissão dos conteúdos coletivos”
— Cristina Feire
Em meio a 388 monumentos: ausências.
Sabendo das condições históricas e sociais nas quais a cidade do Rio foi se desenvolvendo, é de se supor que a balança pese mais às homenagens feitas aos homens; é de se supor que centro e zona sul tenham mais monumentos; é de se supor que os sujeitos brancos sejam maioria; é de se supor, mas a diferença é escandalosa. Será que pela extensão territorial da cidade não haveria outros monumentos, menos conhecidos que, de alguma maneira fizessem contrapeso nessa balança? Aos monumentos tão conhecidos, estudados e reconhecidos, ao perfil “heroico” dos tantos barões, brigadeiros, generais?
Eis o primeiro fruto da pesquisa: a constatação e prova das ausências.
Mapeamento dos monumentos a mulheres
Até julho de 2022 o indicativo era: apenas 25 iniciativas resultaram, através de esforços públicos ou particulares, na construção e implantação de um artefato na cidade como modo de rememoração de atos, lutas, estratégias, contribuições para uma dada comunidade ou cidade feitas por uma mulher. Quase um século separa as inaugurações do primeiro monumento carioca que exalta um homem e o primeiro monumento carioca que exalta uma mulher. Entre 2016 e 2021 nenhum monumento erguido em homenagem a mulheres. Em 2022 duas mulheres homenageadas: à imperatriz Teresa Cristina, um busto e, à Marielle Franco, vereadora assassinada, uma estátua.
“Caladas por uma cidade oficial historicamente propensa a demolir seus lugares potenciais de memória, em constante negação do que somos e não queremos admitir, as culturas historicamente subalternizadas das ruas do Rio reinventaram a vida no vazio do sincopado, sambando, ousando discursos não verbalizados e soluções originais a partir dos corpos em transe e em trânsito, em desafiadora negação da morte, solapada pelo bailado caboclo dos ancestrais que baixam em seus cavalos nas canjiras de santo”
— Luiz Simas e Luiz Rufino
No desejo de lançar sementes, provocar despertamentos, as homenageadas são aqui nomeadas, uma a uma, segundo a ordem cronológica de inauguração de seus monumentos, dando destaque às mulheres não brancas, a minoria dentro da minoria, dentro das homenagens. Quem sabe essa lista não dispare outras pesquisas?
1942 – Chiquinha Gonzaga
1949 – Filomena Del Cima
1955 – Vera Janacópulos
1956 – Ana Nery
1958 – Carmem Gomes
1960 – Carmem Miranda
1966 – Mãe (Joana Teresa Vieira)
1969 – TIA MARIA DO SUL DE MINAS
1981 – ANASTÁCIA
1992 – Clarisse Índio do Brasil
1996 – Princesa Isabel
1997 – Imperatriz Leopoldina
1998 – Zuzu Angel
1999 – Sarah Kubitschek
2000 – Maria Augusta
2001 – Ana Carolina da Costa Lino
2002 – Cacilda Becker
2003 – Princesa Isabel
2008 – Imperatriz Teresa Cristina
2008 – CLEYDE PRADO MAIA
2016 – MERCEDES BAPTISTA
2016 – Maria do Carmo Nabuco
2016 – Clarice Lispector
2022 – Imperatriz Teresa Cristina2022 – MARIELLE FRANCO
O que os sujeitos monumentalizados dizem? O que não dizem? Quais faces compõem a paisagem da cidade? Quais são as faces ausentes?
Faço coro ao samba da Mangueira que canta que chegou a vez do Brasil ouvir as Marias, Mahins, Marieles, Malês e, afirmo ainda, que é passada a hora do Rio ver as tias Marias, Anastácias, Cleydes e Mercedes.
É urgente despertar para a ausência de reconhecimento de outras “pertenças” e o debate a partir dos monumentos pode ser uma estratégia de combate à “memória da amnésia” (BEIGUELMAN, 2019) para fazer brotar as sementes de homens e mulheres que tiveram suas existências e contribuições invisibilizadas ou diminuídas. É urgente debater e fomentar a produção de narrativas sobre tais entidades monumentais e assim, reconstituir, e se necessário, reescrever a história. É preciso ainda abrir caminho para contextualizar as homenagens erguidas na cidade e repensar a presença de algumas em espaços públicos. Tensionar e pôr em evidência o contexto histórico-político do sujeito homenageado, e esclarecer os interesses e consequências de seus atos.
Provocando Estácio
As ausências indicadas pelos monumentos indiciam a prática de um sistema que ignora e nega os corpos marginalizados, que se recusa a olhar e se reconhecer no outro. Mas não é possível evitar o outro, na cidade o encontro é inevitável, e, como Tim Ingold afirma, nos deslocamentos, há o entrelace, o nó. É perceber que hoje, Zumbi dos Palmares e Pereira Passos, ambos sobre a avenida Presidente Vargas, se encaram. Justamente esta avenida, um eixo viário que marca e rememora a lógica que bota abaixo e sobrepõe, lógica de Pereira Passos. Mas é também eixo que é marco para manifestações populares, de cultura e resistência, simbolicamente representada por Zumbi dos Palmares. Uma larga avenida que também é fresta. Atrás de Zumbi a cidade que zanza, atrás de Passos a cidade prancheta. A cidade-pé, da gente que percorre o chão, e a cidade-mão, da gente que risca o papel. É o corpo-paisagem do Rio.
Zumbi e Pereira Passos, o Rio adentro e o Rio bota abaixo
Nesse sentido, a cidade é rede, constituída de linhas, muitas linhas. Linhas retas, linhas curvas, linhas traçadas, linhas marcadas, linhas abertas, linhas fechadas. Linhas que se cruzam e constroem as malhas, que se entrecruzam e evocam encantamentos, e quanto mais entrelaçada, mais forte a malha, mais forte a rede. Os monumentos, entendidos como artefatos simbólicos, também constituem parte desta rede, integram a paisagem da cidade.
“Na luta é que a gente se encontra”, diz o samba da mangueira, mas acredito que cabe um complemento: na luta, e na rua, é que a gente se encontra. É preciso sim pensar na construção de outros monumentos, combater o memoricídio homenageando outros sujeitos, reconhecer e rememorar a história para além dos “heróis emoldurados”, mas isso não basta. É preciso também repensar a forma final das homenagens, a materialidade, a escala, o lugar de implantação. É necessário pensar na relação simbólica que este artefato estabelece com sua comunidade, mas também com a rua, com a cidade. Que sejamos capazes de elaborar outros olhares para os “heróis emoldurados”, e outros meios de construir monumentos, homenagens e paisagens.
Referências:
BEIGUELMAN, Giselle. Ilustríssima Conversa: Da escravidão à ditadura, esquecimento é marca do Brasil, diz professora. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/da-escravidao-a-ditadura-esquecimento-e-marca–do-brasil-diz-professora.shtml.>. Acesso em: 2 out. 2021.,s.d.
______. Memória da amnésia. 1. ed. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019.
CHOAY, Françoise. O patrimônio em questão. 1. ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011.
CUÍCA, Manu da et al. História Para Ninar Gente Grande. Rio de Janeiro: GRES MAGUEIRA, 2018.
DIAS, Vera. Catálogo dos Inventário dos monumentos RJ. Disponível em: <http://inventariodosmonumentosrj.com.br/index.asp?iMENU=catalogo>. Acesso em: 5 out. 2021.
FREIRE, Cristina. Além dos mapas. São Paulo: Anna Blume: FAPESP: SESC, 1997.
INGOLD, Tim. rethinking the animate, re-animating thought. Ethnos.7(1): 9-20, 2006
SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Flecha no tempo. Rio de Janeiro: ed. Mórula Editorial, 2019.
Patrimônio Cultural Bens Tombados. Disponível em: <http://www.inepac.rj.gov.br/index.php/bens_tombados/realizabusca?municipios=68&BemCultural=&PalavraChave=>. Acesso em: 26 ago. 2021.
Créditos das imagens:
Imagem 01: Comissão de frente, Mangueira, 2019
Foto: Gabriel Nascimento – Riotur
Fonte: UOL. Mangueira é campeã do Carnaval exaltando os ‘sem placa’ < https://setor1.band.uol.com.br/mangueira-e-campea-do-carnaval-exaltando-os-sem-placa/>. Acesso em: 2 out. 2021.
Imagem 02: Policiais da CORE no Jacarezinho
Foto: Reprodução Jornal Extra
Fonte: Jornal Extra. Policiais da Core destruindo o monumento que ficava sobre uma ponte da comunidade. https://extra.globo.com/casos-de-policia/entidades-criticam-derrubada-de-monumento-28-mortos-em-operacao-policial-no-jacarezinho-organizacoes-avaliam-recorrer-justica-25507407.html. Acesso em: 2 out. 2021.
Imagem 03: Amostra do levantamento
Crédito: autora
Imagem 04: Quantitativo dos sujeitos homenageados em monumentos cariocas
Crédito: autora
Imagem 05: Mapeamento dos monumentos
Crédito: autora
Imagem 06: Indicativo do acúmulo histórico de monumentos nos zoneamentos
Crédito: autora
Imagem 07: Indicativo pontual da implantação histórica de monumentos por zoneamento
Crédito: autora
Imagem 08: Quantitativo de homenagens a mulheres por zoneamento
Crédito: autora
Imagem 09: Pedro I declara aos seus
Crédito: autora
Imagem 10: As benesses dos barões
Crédito: autora
Imagem 11: Mapeamento dos monumentos a mulheres
Crédito: autora
Imagem 12: Provocando Estácio
Crédito: autora
Imagem 13: Zumbi e Pereira Passos, o Rio adentro e o Rio bota abaixo
Crédito: autora
Fontes utilizadas para montagem:
Fotografias:
A Avenida Presidente Vargas, com a Candelária ao fundo, começa a ganhar forma na década de 1940. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/o-bota-abaixo-que-deu-origem-avenida-presidente-vargas-13858155>. Acesso em: 23 maio 2022. 1940
Ala coreografada do minueto do desfile do Salgueiro. Disponível em: <https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/samba-da-praca-onze-candelaria-20927001>. Acesso em: 23 maio 2022. 1963
Mapas:
Catumbi e Morro da Mineira. Disponível em: <https://www.google.com.br/maps/place/Morro+da+Mineira+Catumbi,+Rio+de+Janeiro+RJ/@22.9233058,43.2006728,15.5z/data=!4m13!1m7!3m6!1s0x997fa0cbaceec1:0x251f54c52f904f5d!2sCatumbi,+Rio+de+Janeiro+RJ!3b1!8m2!3d22.9167399!4d43.1961757!3m4!1s0x997f0b27eac97f:0x522ebb9b2d24db43!8m2!3d22.923017!4d43.1932908>. Acesso em: 23 maio 2022.
Centro do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://www.google.com.br/maps/place/Centro,+Rio+de+Janeiro+RJ/@22.9005256,43.1956281,14z/data=!3m1!4b1!4m5!3m4!1s0x997f5e151c7217:0x7ffdf9c2fc30b97d!8m2!3d-22.9070828!4d-43.1819148>. Acesso em: 23 maio 2022.
Sobre a autora:
Nathalia Giovannini Botelho é mestre em Artes Visuais pelo PPGAV – UFRJ, arquiteta e urbanista pela Universidade Santa Úrsula e historiadora da Arte pela Escola de Belas Artes – UFRJ. Atualmente compõe a equipe do escritório Matéria Base e pesquisa as práticas da Arquitetura e do Urbanismo e sua relação com o desenho, patrimônio e território.