#PIXAGOSTO

Texto e imagens por Giulia Del-Penho

Nos últimos anos, todo mês de agosto, eu me juntei a milhares de desenhistas e ilustradores de todo o mundo em uma ação virtual chamada #inktober. Criada em 2009 por Jake Parker, o Inktober é um desafio de 31 dias, onde a cada dia você posta em suas redes sociais um desenho – que pode ou não ser referente ao tema do dia proposto pelo autor – e compartilha com a hashtag #inktober. O objetivo da ação é estimular a prática diária do desenho, compartilhar técnicas e resultados, e conseguir conectar a comunidade mundial de desenhistas. 

Desde 2020, porém, cada vez mais meus trabalhos têm saído do papel e ido direto pra parede. Em meados de 2022, com a aproximação do segundo semestre, comecei a pensar em maneiras de adaptar esse desafio para as ruas, realizando trinta dias de intervenções urbanas. Rapidamente pensei no formato, e me empolguei tanto com a ideia, que logo em seguida pensei “por que esperar até outubro?”. Já estávamos em julho, seria pouco tempo para projetar toda a ação, mas a ideia do #inktober é justamente essa: desenhar todos os dias, independentemente de qualquer coisa. O nome brotou pronto na minha cabeça: PIXAGOSTO. A adaptação mais brasileira possível do título original, com direito a um trocadilho e tudo mais.

Nos primeiros dias da ação, eu não tinha exatamente um roteiro elaborado do que faria ao longo dos trinta dias do desafio. Passei a andar com um “canetão”, caneta marcador de tinta acrílica permanente muito utilizada no graffiti, e nos primeiros dias me utilizei dela para realizar inscrições pelos locais por onde transitava. Recorri também ao meu acervo de antigos stencils – técnica de pintura com moldes de raio-x, muito utilizada por mim em minhas intervenções – e separei alguns, que passei a carregar comigo na mochila, junto de uma lata de tinta spray.

Esse primeiro momento foi bem despretensioso, com intervenções feitas ao fim do dia, sem muito planejamento: eu observava ao longo do dia possíveis paredes disponíveis, e voltando para casa eu aplicava alguma coisa nela. Mas estávamos em agosto de 2022, às vésperas das eleições presidenciais e, como não podia deixar de ser, o movimento político que brotava nas ruas atravessou completamente o meu projeto, me levando a produzir a intervenção a seguir, que nomeei de “VOTE”.

A ideia inicial para essa intervenção veio durante uma disciplina do PPDESDI, em 2021, quando, durante um exercício, escolhi como objeto de análise o sticker “Andre the Giant has a posse”, do artista de rua e designer Shepard Fairey. 

 A primeira intervenção de Fairey envolvendo a figura de André, o gigante, data de 1989, feita em formato de sticker criado a partir de um stencil do lutador de luta-livre André, relativamente popular no final dos anos 1980, principalmente por suas impressionantes medidas (mais de dois metros de altura e pesando 230 quilos). Como o próprio nos conta em seu manifesto de 1990, a ideia inicial surgiu como uma brincadeira durante uma aula em que ele ensinava um amigo a produzir stencils. Ele percebeu que a imagem se tornou popular muito rapidamente, e rapidamente iniciou um experimento fenomenológico acerca do compartilhamento crescente de seu adesivo. Fairey atribui a popularidade da imagem ao fato de ela não possuir nenhum significado inerente, despertando a curiosidade do transeunte que se depara com ela em espaço público.

Nos anos seguintes, o artista desenvolveu uma segunda versão da obra, com a imagem mais limpa, trazendo apenas a palavra OBEY em vermelho, em uma referência direta ao filme They Live (1988) de John Carpenter. Com isso, a imagem passou cada vez a ser associada com discursos de transgressão e de ocupação das ruas, se tornando um verdadeiro símbolo, mundialmente reproduzido até hoje, em sua forma original ou pastiches e apropriações diversas, feitas pelo próprio Fairey e por muitos outros artistas ao redor do mundo. No próprio site do artista, é possível acessar diversas paródias da arte original, com figuras como Darth Vader, Monalisa e Mickey Mouse. 

Para a minha versão brasileira, escolhi o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, usando como base um já famoso stencil retratando-o, e substituindo a palavra OBEY por uma tão forte quanto: VOTE. Estávamos em período pré-eleitoral de uma eleição marcada por tensões entre eleitores de diferentes partidos. Havia um certo receio, de pessoas próximas a mim, dos perigos que corria ao realizar a intervenção. Mas também recebi muito apoio de colegas de trabalho, amigues e transeuntes que presenciavam a aplicação dos lambe-lambes e adesivos. 

Agosto foi um mês em que viajei muito a trabalho, e graças ao apoio de colegas, consegui expandir minha ação por muitas outras cidades além do Rio de Janeiro: o #PIXAGOSTO esteve presente em: Porto Seguro, Arraial D’ajuda, Caraíva, Trancoso, Nova Iguaçu, Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo.

Também colei incontáveis lambe-lambes no trajeto rotineiro que fazia de bicicleta, saindo de Copacabana e indo até a ESDI. No Rio de Janeiro, a intervenção “VOTE” foi feita nos seguintes bairros: Copacabana, Humaitá, Botafogo, Flamengo, Catete, Glória, Cinelândia e Lapa. 

Por se tratar de um trajeto recorrente, quase diário, pude traçar uma análise sobre a aceitação da intervenção, com base na permanência de cada uma delas. Quanto mais perto do centro da cidade, maior a duração da intervenção: a maioria dos lambes que colei na Cinelândia e na Lapa permaneceram lá até o fim do #PIXAGOSTO – alguns estão lá até o momento em que escrevo esse texto. Por outro lado, nenhuma intervenção feita em Copacabana durou mais do que 24 horas, independente da técnica utilizada.

O exemplo mais drástico dessa rejeição foi uma caixa metálica, que suponho ser de energia elétrica pública, localizada ao lado de minha casa, e em frente à minha seção eleitoral. Falar sobre essa caixa metálica renderia mais uma publicação só sobre o tema. Talvez um projeto de mestrado. O que eu posso dizer, resumidamente, é que uma guerra silenciosa foi travada na disputa por essa caixa. E ela se estendeu muito além do mês de agosto e do projeto #PIXAGOSTO. Entre o primeiro e o segundo turno das eleições, eu colei o “VOTE” lá incontáveis vezes, e em todas elas, ele foi removido. Decidi então abandonar o papel, e pintar o stencil direto contra a superfície. Ele foi riscado, na tentativa de remoção, e depois toda a caixa foi pintada de tinta branca.  

Na madrugada do dia 30 de outubro, data do segundo turno, intervi nela pela última vez. Menos de 48 horas depois, com Luiz Inácio Lula da Silva já eleito presidente da República, a caixa novamente foi pintada de branco. Mas meu propósito ali estava cumprido. A chuva que caiu na madrugada do dia 02 lavou boa parte da tinta branca. Agora, a caixa se encontra assim: uma memória da guerra travada, e uma tela em branco esperando a próxima intervenção.

Durante o desafio do #PIXAGOSTO, ao todo mais de duzentos lambe-lambes e stickers foram produzidos. Dez cidades receberam a intervenção “VOTE”, seja feita por mim ou por amigues a quem cedi o material. Além disso, recebi relatos de mais quatro pessoas que se propuseram a pelo menos um dia de desafio no #PIXAGOSTO. Pretendo repeti-lo ano que vem, e te convido a se juntar a mim. 

Sobre a autora:

Giulia Del-Penho é formada em Direção Teatral pela Escola de comunicação da UFRJ, mestranda em design pelo PPDESDI da UERJ, iluminadora, produtora e artista de rua nas horas vagas. Trabalha principalmente com as técnicas de stencil e lambe-lambe e tem o espaço urbano como sua grande inspiração.

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